PREFÁCIO
Dizem que os escritores, em sua maioria, escrevem para si mesmos, esperando que seus livros se transformem em best-sellers. Mas hoje em dia, no fim de 2084, é impossível que um livro, por mais importante e bem escrito que seja, venda cópias em número suficiente para ser considerado um best-seller. Os grandes vendedores de livros dependem totalmente da internet, que, como o restante de nossa infraestrutura, vem se tornando cada vez menos confiável e menos segura – e com certeza não sobreviverá ao final do século. Quase todas as lojas físicas que no passado sustentavam as vendas foram há muito tempo removidas do mercado pelas lojas on-line.
Por que então escrevi este livro, sabendo que será lido principalmente por meus amigos e familiares? Porque sou um historiador oral. Meu trabalho é documentar eventos significativos da história humana usando as palavras daqueles que os vivenciaram. Com isso, proporcionamos a matéria-prima para que outros historiadores as sintetizem e generalizem. Claro que também escrevo porque gosto – e escrever ainda é um prazer possível. E não preciso de computadores, da internet ou da chamada “nuvem”, mas tão somente de lápis e papel.
O mestre dessa abordagem e meu modelo é o grande historiador oral do século XX Studs Terkel. Dois de seus livros, The Good War: An Oral History of World War II (A guerra boa: uma história oral da Segunda Guerra Mundial) e Hard Times: An Oral History of the Great Depression (Tempos difíceis: uma história oral da Grande Depressão), captaram os efeitos dessas calamidades – como nenhum outro livro o fez – sobre americanos de todas as classes. Eu os reli diversas vezes durante toda a minha carreira e eles nunca deixaram de me inspirar.
Studs viajava para entrevistar pessoas de todos os tipos, em fazendas e fábricas, em cidades e vilarejos, de aposentados a jovens, de indivíduos de grande destaque a homens e mulheres comuns. Como no caso dele, quase todos os meus entrevistados são pessoas comuns, embora eu também tenha incluído alguns líderes e especialistas. Para este livro, entrevistei cerca de cem pessoas – o que é um número exagerado – e acabei selecionando as entrevistas que melhor ilustram a maneira como enchentes, secas, guerras, fome, doenças e migrações em massa provocadas pelas mudanças climáticas afetam a humanidade.
Sinto uma afinidade especial com Studs Terkel por ter nascido em 2012, exatamente cem anos após o nascimento dele. Em 1912, o aquecimento global era apenas um conceito teórico. Alguns cientistas achavam que poderia se transformar em realidade, mas dispunham de poucas informações para considerá-lo perigoso. Além disso, acreditavam, compreensivelmente, que um mundo mais quente seria melhor para a humanidade. No ano de meu nascimento, um século mais tarde, já não havia qualquer dúvida de que o aquecimento global era um fato, que era causado pelos seres humanos e representava um perigo real para a nossa espécie. Todavia, em função de uma campanha financiada pelas grandes empresas petrolíferas da época, metade da população e muitos políticos optaram pela negação, colocando ideologias e mentiras acima do futuro de seus netos.
Ao longo do livro, mantive minha participação em nível mínimo, destacando em itálico minhas perguntas e deixando que meus entrevistados falassem à vontade, como Studs fazia. Para tornar a leitura mais fácil, agrupei os capítulos por tópicos, de modo um tanto arbitrário, já que muitas regiões são atingidas por mais de um efeito do aquecimento global. Exceto em situações devidamente indicadas, usei nas entrevistas um telefone via satélite.
Lexington, Kentucky
31 de dezembro de 2084
O CIENTISTA DO CLIMA
Conversarei hoje com o Dr. Robert Madsen III, que, assim como seu pai e seu avô, é um cientista do clima.
Dr. Madsen, tenho uma pergunta que muitas pessoas se sentem compelidas a fazer.
Todos nós tentamos entender por que, nas primeiras décadas deste século, antes que o tempo se esgotasse, as pessoas não agiram para, pelo menos, desacelerar o avanço do aquecimento global. Teria sido porque não havia indícios suficientes, porque os cientistas não conseguiam chegar a um acordo, porque havia alguma teoria melhor para explicar o óbvio processo de aquecimento em curso ou por algum outro motivo? A geração de nossos avós com certeza deve ter tido uma boa razão para permitir que isso ocorresse. Que razão foi essa?
Bem, posso lhe assegurar que este não será o capítulo mais longo de seu livro, pois a resposta é curta e simples: eles não tinham uma boa razão.
Já na virada do século, os indícios de aquecimento global provocados pela atividade humana eram esmagadores e foram se acumulando até se tornarem inegáveis para qualquer pessoa racional – ou melhor, para qualquer um que usasse a razão como guia. Um amigo meu, formado em Direito, me perguntou certa vez se o aquecimento global era corroborado por provas concretas ou “além da dúvida razoável”, o critério mais elevado em um caso criminal. Respondi que o aquecimento global estava, sim, além de qualquer dúvida razoável e era tão evidente quanto qualquer teoria científica.
Se alguém retornasse ao passado e julgasse a opinião coletiva dos cientistas com base no que publicavam nos periódicos, essa pessoa descobriria que, por volta de 2020, 100% deles concordavam que a atividade humana era a causa do aquecimento global. Não se trata de um arredondamento ou de um número que tirei do nada, mas de uma análise de aproximadamente 20 mil artigos, avaliados por outros cientistas e publicados naquele período.
Por mais difícil que seja imaginar isso, os negacionistas do aquecimento global não tinham qualquer teoria para explicar as evidências. Seria até compreensível se nas décadas de 2010 ou 2020 as pessoas tivessem permitido a destruição de nosso mundo por terem apostado na teoria errada. Mas não havia qualquer teoria alternativa. As temperaturas subiam, os incêndios florestais se multiplicavam em todos os continentes, o nível do mar aumentava cada vez mais, as tempestades se tornavam mais devastadoras e assim por diante. Aqueles que negavam a responsabilidade humana não tinham a menor curiosidade a respeito do que estava agravando os eventos climáticos; mas já haviam decidido sobre o que não estava: os combustíveis fósseis.
Tudo bem, isso é claro e simples. Mas até os negacionistas sem teorias precisariam de uma alternativa para explicar os dados que convenciam os cientistas. Como tentaram fazer isso?
Durante algum tempo, disseram que o aquecimento global era uma fraude, que os cientistas haviam falsificado os dados. Aqueles que negam a ciência sempre acabam alegando conspiração, pois a única alternativa seria admitir que os cientistas estão certos.
Se o senhor vivesse naqueles dias, como responderia a quem alegasse que atribuir o aquecimento global à atividade humana era uma conspiração?
Bem, eu teria conclamado essas pessoas a fazerem a si mesmas algumas perguntas simples. Como a conspiração fora organizada? Aqueles 20 mil artigos tinham sido escritos por aproximadamente 60 mil autores de diversos países mundo afora. Como os conspiracionistas teriam feito esse esquema funcionar? Precisariam ter usado e-mails. Só que, na primeira década, alguém vazou uma montanha de e-mails enviados por proeminentes cientistas do clima e nenhuma das mensagens ofereceu qualquer indício de conspiração.
Por que nenhum conspirador foi descoberto, escreveu memórias relatando a conspiração ou fez uma confissão em seu leito de morte? E, para início de conversa, por que os cientistas teriam conspirado? Nos Estados Unidos, a resposta dos negacionistas seria “porque eram liberais”. Entretanto, mais da metade dos ensaios científicos provinha de países onde esse rótulo não fazia sentido.
Mas, claro, na década de 2010 os negacionistas não faziam a si mesmos esse tipo de pergunta. Para eles, a falácia do aquecimento global era tão óbvia que o motivo que levou os cientistas a inventarem essa mentira já não tinha importância.
Na década de 2020, mentiras começaram a substituir a verdade não só na área científica como em muitas outras. As pessoas preferiam aceitar uma mentira que respaldasse suas crenças a enfrentar uma verdade que as destruísse. Isso permitiu que países como Austrália, Brasil, Rússia e Estados Unidos elegessem negacionistas para liderá-los.
Mesmo no início dos anos 2020, o aumento do aquecimento poderia ter sido limitado a 3°C. Mas os países nem tentaram fazer isso. Quando finalmente fizeram, mesmo um aumento como 4°C já não era opção. Não sabemos quantos graus a temperatura do planeta ainda poderá aumentar. É estranho: nós, humanos, nos orgulhamos de ser regidos pela razão, mas, mesmo com a nossa civilização em risco, escolhemos a ideologia e a ignorância.
Se as pessoas achavam que os cientistas eram tão desonestos a ponto de forjarem o aquecimento global, devem ter achado difícil acreditar nos cientistas em relação a outros assuntos. Tal atitude teve algum efeito no status da própria ciência?
Meu avô, que era cientista, foi a inspiração para que eu também me tornasse cientista. Ele me contou como, no final da década de 2010, negacionistas da ciência ocuparam a Casa Branca e as mais altas hierarquias de todas as agências governamentais. Cortaram, então, os financiamentos destinados a pesquisas não só sobre o clima como também sobre todas as áreas que tinham algo a ver com meio ambiente, espécies ameaçadas, poluição industrial e por aí vai. A Agência de Proteção Ambiental e a Fundação Nacional da Ciência não sobreviveram à década de 2020; os financiamentos federais destinados às ciências caíram aos níveis daqueles da década de 1950. Vovô dizia que, para ele e seus colegas, parecia que o termo “ciência” havia se tornado um palavrão.
Os cientistas da época, que em sua maioria dependiam de subvenções governamentais, tiveram de abandonar seus programas de pesquisas. Grandes universidades sofreram cortes de um quarto a um terço de seus subsídios. Uma das primeiras coisas que fizeram foi reduzir a verba dos departamentos de ciências e demitir professores. Não vendo futuro na área científica, os alunos optaram por estudar outras matérias. As matrículas nos departamentos de ciências minguaram, o que justificou a eliminação de novos cursos e a demissão de mais professores.
Publicações científicas, cujo principal público era a comunidade acadêmica, também foram vitimadas à medida que o volume de pesquisas despencava e o financiamento às bibliotecas universitárias escasseava até desaparecer. Sem financiamento a pesquisas e sem publicações, muitas sociedades científicas também tiveram que fechar as portas.
Encontrei na biblioteca do meu avô um volume bastante manuseado com o seguinte título: O fim da História e o último homem. Talvez não estejamos ainda no fim da ciência, mas podemos vê-lo se aproximando.
PARTE 1
SECAS E INCÊNDIOS
MARROCOS NA SUÍÇA
Christiane Mercier é correspondente do jornal francês Le Monde e escreve sobre aquecimento global. Nesta entrevista ela me falou sobre a situação de diferentes locais da Europa. Nossa primeira conversa ocorreu na estação de esqui de Zermatt, na Suíça.
Fiz esta viagem para avaliar o que o aquecimento global tem provocado em diversos locais da Europa. Estou no coração do antigo setor de turismo suíço, onde a prática de esqui não é mais possível. Zermatt já teve pistas de esqui de categoria mundial e uma vista fabulosa do Matterhorn. Enquanto observo ao redor, não vejo neve em lugar nenhum, nem mesmo no topo do Matterhorn.
A fim de me preparar para esta entrevista, fiz algumas pesquisas sobre a história do aquecimento global nos Alpes. Os sinais eram sinistros já no final do século XX. Naqueles dias, a linha de neve descia até 3.030 metros. Mas no verão extremamente quente de 2003, por exemplo, a quantidade de neve acumulada no topo recuou, deixando a montanha visível, sem neve, até uma altura de 4.600 metros – elevação maior que a do Matterhorn e quase tão alta quanto o topo do Mont Blanc, o pico mais alto a oeste do Cáucaso. O permafrost (solo constituído por terra, gelo e rochas) que segurava as rochas e o solo no Matterhorn derreteu, enviando detritos montanha abaixo. Ainda é possível ver pilhas de entulho ao redor e dentro dos chalés e restaurantes abandonados.
Eu poderia fazer um relatório idêntico em Davos, Gstaad, St. Moritz ou em qualquer das estações de esqui antigamente famosas da Suíça, França e Itália. Os Alpes não têm neve e gelo permanentes desde a década de 2040. Pelo que sei, as encostas de esquiagem das montanhas Rochosas, nos Estados Unidos, tiveram o mesmo destino.
Meteorologistas nos disseram que o clima no sul da Europa hoje é similar ao da Argélia e do Marrocos no início do século
XXI. Em termos de temperatura e precipitação pluvial, o sul da Europa é agora um deserto e os Alpes estão a caminho de se parecerem com os montes Atlas daqueles tempos.
Algumas semanas depois, a Sra. Mercier estava em Nerja, na Costa do Sol espanhola, antigo abrigo de expatriados e visitantes sazonais que fugiam do frio inverno da Alemanha e do Reino Unido.
Olhando para o sul, no litoral de Nerja, vejo à minha frente o vasto e azul Mediterrâneo. Olhando para o norte, o que vejo é um mar de condomínios abandonados, milhares, dezenas de milhares – um número inacreditável – de casas arruinadas se esfarelando. Não é difícil entender por quê: os campos estão ressecados, mortos. Às duas da tarde, diante das ruínas do Hotel Balcón, na costa de Nerja, a temperatura é de 51°C e não sinto nenhuma brisa. Parece que sou a única pessoa por aqui e não pretendo permanecer por muito tempo.
A caminho de Nerja, partindo de Córdoba e Granada, observei os restos calcinados de dezenas de milhares de oliveiras, a monocultura que antes dominava o sul da Espanha. Quando a região ficou mais quente, as oliveiras secaram, tornando-se mais suscetíveis a incêndios e doenças. Atualmente, o cultivo de oliveiras se transferiu da Espanha e da Itália para a França, a Alemanha e até para a Inglaterra.
De Nerja, a Sra. Mercier viajou para Gibraltar.
Tive grande dificuldade para encontrar transporte de ida e volta. E a viagem que antes durava meio dia agora dura quatro. Guardando a entrada e a saída do Mediterrâneo, Gibraltar era uma das joias da coroa do Império Britânico. Mas no outro lado do mar, distante apenas alguns quilômetros, estava o Marrocos. Uma proximidade que tornava Gibraltar a meca natural para migrantes climáticos.
Enquanto fazia minhas pesquisas para a viagem, descobri um relato da década de 2010 segundo o qual a migração para a União Europeia já tinha aumentado em função do crescente calor, das secas cada vez mais numerosas e da desordem social resultante. Um dos estudos previa que o número anual de migrantes naquela década, em torno de 350 mil, dobraria por volta de 2100. Mas esse estudo, como muitos naquele período, independentemente do tópico, projetava o futuro com base no passado; e o passado não era um bom guia numa época em que já havia um “novo normal” a cada um ou dois anos. Tais projeções quase nunca levavam em consideração o aquecimento global e seus efeitos. Agora ninguém mais sabe quantos migrantes conseguiram chegar à Europa provenientes da África, do Oriente Médio e do que costumávamos chamar de Europa Oriental, mas, com certeza, o número deve estar na casa das centenas de milhões, talvez meio bilhão. E eles continuam a chegar.
Por volta de 2050, havia tantos migrantes em Gibraltar que o Reino Unido anunciou que estava cedendo o território ao país que havia tanto tempo o reivindicava. A Espanha fez então esforços tímidos para governar Gibraltar. Mas quando as usinas de dessalinização – das quais o país dependia para obter água potável – pararam de funcionar, a Espanha não teve condições de substituí-las. Em 2065, o país acabou desistindo e declarou Gibraltar uma cidade aberta, que desde então vem sendo chamada por seu nome original: Jabal Ṭāriq, a Montanha de Tariq.
Para mim logo ficou claro que Gibraltar se tornou um centro de contrabando e outras atividades criminosas. Ir até lá é arriscar a vida. Tive que entrar na cidade disfarçada de homem e acompanhada por mercenários armados. Não fiquei por muito tempo, mas o bastante para verificar que, quando algumas pessoas dizem que o aquecimento global trará problemas assombrosos, elas não estão muito longe da verdade.
Quando conversei novamente com a Sra. Mercier, ela já tinha se deslocado para a província espanhola de Múrcia, na costa mediterrânea da Espanha.
Em Jabal Ṭāriq, aluguei um barco que me levou a Múrcia, na direção nordeste, parando em lugares que meu capitão considerava seguros. Se alguém visitasse Múrcia nos primeiros anos do século, passaria por campo cheios de alface e estufas com tomates. Teria visto novas casas de férias e condomínios brotando por toda parte. A caminho da praia, seria difícil não passar por algum verdejante campo de golfe. Em uma terra tão seca, de onde a Espanha obtinha água para tudo isso?
Como o senhor sabe pelos meus relatórios, antes de visitar uma área je fais mon travail – eu faço meu trabalho –, isto é, estudo a história de uma cidade ou de um país a fim de entender o que estou vendo. Múrcia é um caso clássico de como as pessoas e os governos são impotentes quando se trata de impedir que as pessoas arruínem seus bens comuns – e suas vidas – movidas pelo interesse próprio.
Múrcia sempre foi seca, mas a falta de chuvas nunca impediu as pessoas de se comportarem como se o suprimento de água fosse inesgotável. Se a água não caía do céu, as pessoas a encontravam no subsolo ou a traziam de distantes áreas nevadas. Na virada do século, elas se recusavam a acreditar que chegaria o dia em que nenhuma dessas estratégias funcionaria.
Até o final do século passado, os agricultores de Múrcia cultivavam figos, tâmaras e, onde havia água suficiente, limões e outras frutas cítricas. Depois o governo providenciou que mais água fosse transferida de províncias menos secas, o que permitiu aos agricultores o cultivo de lavouras sequiosas, como alface, tomate e morango. As imobiliárias iniciaram então uma febre de construções e cada prédio novo tinha que ter a própria piscina. Os turistas, por sua vez, precisavam de mais casas de veraneio e condomínios, além de campos de golfe em número suficiente para que não tivessem que esperar sua vez. Manter os campos de golfe sempre verdejantes exigia diariamente milhares de litros de água. Alguém certa vez calculou que uma única ronda de um golfista consumia 11 mil litros de água. Hoje, o golfe seguiu o caminho do hóquei, do esqui e de outros esportes.
Se as autoridades espanholas tivessem levado a sério o aquecimento global e estudado os registros das temperaturas de Múrcia, poderiam ter sido mais cautelosas. Durante o século XX, o aquecimento na Espanha foi duas vezes maior que o da Terra em geral, o que reduziu a precipitação pluviométrica. Os cientistas previram que o índice cairia mais 20% até 2020 e 40% por volta de 2070. As previsões se revelaram exatas, embora na época ninguém tivesse prestado atenção. Quando as províncias do norte tiveram que interromper a transferência de água, os agricultores de Múrcia e outras cidades começaram a bombear água do subsolo, levando o lençol freático a diminuir acentuadamente, o que gerou um mercado negro de água, extraída de poços ilegais. Logo os aquíferos ficaram tão profundos que as bombas já não conseguiam trazer água até a superfície. Escândalos vieram à tona quando funcionários corruptos foram flagrados exigindo pagamentos para autorizar construções em áreas onde não havia água. Estranhamente, pessoas crédulas na Grã-Bretanha e na Alemanha continuaram a comprar casas de veraneio na Espanha. Ao chegarem ao novo imóvel ou condomínio, abriam a torneira e verificavam que nada jorrava. Então procuravam alguém que pudesse ser processado. Mas descobriam que uma cláusula do contrato, grafada em letras minúsculas, oferecia aos construtores e ao governo uma escapatória caso um desastre natural provocasse falta de água. Aquecimento global é desastre natural? Por favor, não me faça rir.
Quando a água secou, os agricultores voltaram a cultivar figos e tâmaras. Mas à medida que o século avançava e as previsões dos cientistas se mostravam corretas – ou, com mais frequência, conservadoras –, até mesmo essas lavouras de regiões desérticas deixaram de ser economicamente viáveis na Espanha. Na década de 2050, a agricultura desapareceu de Múrcia. Condomínios e casas de veraneio permaneciam vazias. Atualmente, exceto pelas construções abandonadas, Múrcia já não se distingue do deserto norte-africano de um século atrás.
Quando volto a conversar com a Sra. Mercier, ela já está em sua casa em Paris.
Ao voltar para casa, passei pelo vale do Loire, uma região que produzia alguns dos mais incríveis vinhos do mundo: Chinon, Muscadet, Pouilly-Fumé, Sancerre, Vouvray e outros. Todas as vinhas desapareceram. Ocorre que, com a elevação das temperaturas, as uvas amadurecem mais cedo, o que aumenta seu nível de açúcar e reduz sua acidez. Uvas assim produzem um vinho mais rústico, com maior teor alcoólico. Se as temperaturas tivessem aumentado só 1°C ou 2°C – se tivéssemos permanecido abaixo do ponto de ruptura dos níveis de dióxido de carbono –, o Vouvray poderia não ter o mesmo gosto, mas ainda seria bebível. Algum conhecedor poderia até reconhecê-lo como alguma variação do Vouvray. Mas a temperatura subiu 5°C. As castas viníferas já não crescem no vale do Loire e a vinicultura lá, como no restante da França, está morta. Se alguém hoje quiser vinho, terá que ir até o antigo Reino Unido ou a Escandinávia.
Neste momento estou à sombra do Arco do Triunfo, no meio da tarde de 1o de julho de 2084. Ainda bem que estou à sombra, pois a temperatura é de 46°C. Permanecer sob o sol neste calor por mais de alguns minutos é a garantia de um infarto. Olhando ao redor, vejo um punhado de veículos em movimento. Há poucas pessoas na rua. Mesmo à noite, é quente demais para que alguém fique ao relento, pois é quando Paris libera o calor que seu aço e seu concreto absorveram durante o dia. A Cidade-Luz se transformou, como muitas outras, na Cidade do Calor e seus cafés nas calçadas são apenas uma lembrança.
De Paris, nossa repórter viaja para Calais, no canal da Mancha.
O caminho até aqui foi tão difícil que quase desisti e retornei a Paris. Não vai demorar para que seja impossível fazer uma viagem dessas em segurança. Assim como Gibraltar tem sido o ponto de entrada natural dos africanos que se deslocam para a Europa tentando escapar do calor mortífero, Calais, a 32 quilômetros de Dover, no outro lado do canal, tem sido o ponto de saída natural dos que tentam alcançar o clima mais fresco do antigo Reino Unido. Na década de 2020, os britânicos tentaram reduzir a imigração, tanto a legal quanto a ilegal. Por algum tempo conseguiram, mas no final da década de 2030 o número de imigrantes ilegais que chegavam ao seu território começou a crescer e assim tem continuado. A principal função de Calais é atender a essa imigração ilegal. Assim como vi poucos espanhóis no sul da Espanha, quase todos os que vejo e com quem converso em Calais não são franceses nem britânicos, mas árabes, africanos, sírios e eslavos. A única coisa que têm em comum parece ser o fato de terem vindo de outro lugar e estarem determinados a alcançar as brancas colinas de Dover. Alguns migrantes tentam atravessar o canal a nado, mas poucos sobrevivem à tentativa. O tumulto aqui me lembra uma cena que vi em um antigo cinejornal, que mostrava o caos durante a Queda de Paris à medida que os alemães se aproximavam da cidade e os parisienses se dispersavam em todas as direções.
No porto de Calais vejo a reconstituição de outra cena da Segunda Guerra Mundial: a Força Expedicionária Britânica fugindo de Dunquerque em centenas de barcos de todos os tipos. A água agora está repleta de embarcações díspares, ocupadas até os conveses por indivíduos que se deslocam rumo à terra prometida, a Inglaterra, onde contrabandistas de pessoas os aguardam – ou pelo menos é o que eles esperam.
Pensei em comprar uma passagem também e enviar meu relatório da Inglaterra. Mas me sinto tremendamente derrotada e deprimida com o que tenho visto. Je me rends.