Nota da Autora
Antonia e suas filhas é uma história real. Para preservar a privacidade da família e seu estilo de vida, mudei nomes e ambientei a narrativa em um outro lugar da Toscana, diferente daquele onde tudo de fato aconteceu.
Em 2010, aos 89 anos, Antonia faleceu em paz pouco antes do amanhecer de um dia de maio, 12 dias após nosso último encontro. A história que me relatara no verão de 2003 ela transmitiu às filhas, por meio de uma série de cartas que começaram a ser escritas em 2004, todas encontradas entre seus documentos pessoais.
Embora Antonia sempre manifestasse o desejo de que eu escrevesse o livro – depois que eu tiver partido –, também deixou registrada essa vontade nas cartas. Suas filhas, netas e bisneta concordaram com este desejo, e todas essas mulheres, em especial as que chamei de Filippa e Luce, me incentivaram a levar o projeto adiante.
Tive dificuldade de incluir nesta narrativa diversas passagens. Em muitas ocasiões, fiquei tentada a omitir alguns detalhes ou, pelo menos, enfeitar a verdade aqui e ali. Senti vontade de excluir vários trechos das minhas primeiras anotações, porém – mesmo com angústia – eu os mantive. Esta é a obrigação moral de um narrador quando assume a tarefa de contar a história de outra pessoa.
Prólogo
Inverno
Os últimos raios de sol desaparecem em meio a nuvens escuras e amareladas. Na frente das portas dilapidadas do número 34, na via del Duomo, acenamos um addio para o grande caminhão azul, um emaranhado de tiras e lonas chacoalhando na carroceria vazia enquanto ele escala a suave encosta de pedras em direção à catedral. Como se esperássemos por um sinal, ficamos ali, Fernando e eu, abraçados, muito depois que o veículo desaparece.
Ah, é verdade, acho que este deve ser o momento em que nos viramos, abrimos as portas, subimos a escada e vamos para o salão de baile, restaurado, esfregado, envernizado, estofado, já-perfumado-pela-lenha-da-primeira-lareira-acesa-da-manhã. Durante os dois
últimos anos rezamos, sonhamos e juntamos todas as nossas economias para um dia chegar a esse momento. E agora? Pela primeira vez, não há ninguém por ali martelando, praguejando e cantando. Ninguém. Nenhum dos cinco peões napolitanos que se tornaram como filhos para nós dois, nem os estofadores, que – como confeiteiros que precisam atravessar um corredor para entregar um pudim flambado – haviam carregado cortinas e bandôs, peça a peça, poltronas e sofás, um por um, pelo emaranhado de becos desde suas oficinas até aqui, o número 34, passando por vizinhos reunidos pelo caminho para dar uma olhada no trabalho do dia. Tanto vermelho – quase tudo é de algum tom de vermelho –, eles tagarelavam, fascinados. Também se foi o carpinteiro que fez dois pés da mesa mais curtos do que os outros dois e jurou que tinha sido de propósito, dizendo que o desnível dava uma perspectiva correta ao ambiente. Eu ainda fui capaz de lhe perguntar sobre os pratos que, com certeza, deslizariam e colidiriam com aqueles da pessoa na base da inclinação. Enquanto ele balbuciava sobre fazer a experiência de servir pratos de sopa e copos com variadas quantidades de água, para demonstrar as leis da física, disse – com o desdém de quem se dirige a um forasteiro, uma postura comum com a qual o estrangeiro deve aprender depressa a lidar com alguma tolerância: “Aqui se ‘arruma’ a vida para que ela se adapte à arte.” Também se foi o marmorista com cílios espessos como os de um pônei, que pisava firme, de aposento em aposento, com um punhado de correntes e o rosnado de um carrasco pronto para torturar a superfície da pedra, e o eletricista, que, como tinha tão pouco a fazer pois os lustres e os candeeiros eram a vela, acabou ajudando o encanador. Todos se foram. Formávamos uma família grande, exuberante e extremamente funcional, mas agora não sobrou ninguém – exceto nós dois. Nossos pertences estavam desembalados, a cozinha pronta, havia feijões brancos e pancetta e um ramo de sálvia cozinhando lentamente junto com vinho tinto numa panela de barro em banho-maria, o baldacchino de madeira amarela que trouxemos de Veneza para a Toscana e para cá estava montado, com seu colchão de seda vermelha recheado de penas, havia lenha empilhada no terraço dos fundos, roupa de cama no baú, brocado e seda adamascada estendida, pregada, revestindo toda e qualquer superfície por menor que fosse. Quando subirmos aquelas escadas, finalmente estaremos em casa. Então por que Fernando e eu estamos aqui fora, no frio?
– Não deveríamos subir? – pergunta ele.
Olho para Fernando que me observava, esperando o fim de meu devaneio.
– É claro. Vamos tomar um banho, descansar e…
– E depois vamos caminhar até a piazza e nos sentar um pouquinho no Foresi. Va bene?
– Você acha que alguém da velha turma vai aparecer? Miranda, talvez. Ou Neddo. Talvez Barlozzo. Acha que alguém vai aparecer?
– Depois de ficar tão próximos durante esses dois anos de espera e de trabalho, acho que eles acreditam que vamos encontrar nosso próprio modo de comemorar a primeira noite no salão de baile.
– Eles têm razão, não é?
– Claro que sim. Agora venha comigo.
O bico arredondado de minhas botinas bate na parede de cada degrau raso. Eu os conto enquanto subo: uno, due, tre, quattro, como se não soubesse que são 28. Chego ao umbral de nossas portas duplas, ainda escancaradas, os batedores com cabeça de mouro estremecendo contra as placas enferrujadas sob a rajada de vento e neve que desce, rodopiando, da claraboia aberta. Assim como açúcar peneirado. Olho sobre a balaustrada para o pátio lá embaixo e vejo que o dono da mercearia vizinha segurou Fernando para uma conversa sobre futebol. Sem querer entrar – não sem ele –, sento-me atravessada no último degrau, as costas acariciadas pela aspereza da velha parede. Com uma perna cruzada sobre o joelho, fecho os olhos e respiro fundo para acalmar as batidas fortes de meu coração, dizendo a mim mesma que nada mudará muito agora que estamos em casa. Vamos continuar nossas explorações pela cidade e comuni vizinhas, vagaremos pelas feiras pela manhã, tomaremos nosso espresso acompanhado de doces no Montanucci. Cozinharemos e assaremos. Equilibrando nossa vida na cidade com o tempo no campo, perambularemos por bosques e campos e entre vinhedos a cada estação. Caminhando pela relva úmida nas manhãs de outono, mandando passarinhos para o alto das árvores, vamos cutucar com galhos os veios retorcidos das raízes de carvalho e as folhas apodrecidas, onde se espalham porcini gordos e com cheiro de terra e de algo escuro e proibido. Enquanto enchemos nosso cesto já sentiremos o sabor deles, sobre uma grelha, assados na fogueira, recheados com gotas de bom azeite verde e alho, o sumo respingando sobre grossas fatias de pão na panela colocada debaixo deles. Colheremos groselhas-negras nas valas, espetaremos as mãos nos espinhos de roseiras silvestres, juntaremos castanhas do tamanho de ameixas, gravaremos cruzes nos miolos e as cozinharemos até que as cascas tostem e se rompam. Em abril, cravaremos na macia terra primaveril e sob as raízes de novas folhagens a antiga espátula feita à mão, presenteada por Neddo. Amarraremos a verdura em maços com os pedaços de barbante de cozinha, coisa que Miranda me ensinou a carregar no bolso da saia. Salada para o jantar.
Vamos alugar um terreno de um daqueles lavradores em Canonica e prenderemos tomateiros em estacas de bambu, cuidaremos de melões que amadurecem em estufas e plantaremos vinte fileiras de flor de abobrinha. E quando os botões amarelos ficarem tão grandes quanto lírios, nós os colheremos, lavaremos com água da fonte de Tione, sacudiremos para secar, acenderemos uma fogueira com lenha em uma cova à beira da campina, passaremos as flores em massa à base de cerveja e fritaremos na hora. Crocantes, douradas, da panela direto para a boca, tantas quanto conseguirmos comer. Pão fresco, alface fresca, azeite do meu jarro, flocos de sal esfregado pelas nossas mãos. Nada mais além do vinho. Ficará fresco, talvez frio lá em cima, quando a luz do dia der lugar a uma lua vermelha no céu de maio. Lanternas amarelas ladeando a rua até o portão romano lá embaixo parecerão estrelas dispersas. Luca e Orfeo lá estarão, assim como Miranda, Neddo e Tilde. Também Barlozzo. Ainda serão nossos dias rotineiros. E os dias durarão tanto quanto nós. Pelo tempo que o embate entre nossos destinos e nossas tolices permitir. São tolices inevitáveis. No final das contas, um belo projeto para um ou dois últimos capítulos de uma vida. Para aquelas fases que a Poliana que há em mim sempre vai encarar de uma forma romântica e para as fases que são reais como a terra em que pisamos. De fato é um belo projeto. Mas então o que é esse aperto que sinto em meu peito?
Uma espécie de temor, não é? Sem nome, sem forma, sem rosto? Qual é a palavra em galês? Hiraeth. Não é exatamente medo, e sim uma espécie de anseio, acredito. Um tipo de tristeza. Será que sentirei falta dos destroços, do imbróglio, da expectativa, da necessidade de improvisar e levar a vida adiante, dos personagens que entravam e saíam, os figurantes de uma farsa? Sim. Será que eu me perdi de mim mesma na turbulência de toda a movimentação? De novo, sim. Quero continuar sendo paparicada durante mais tempo neste lugar fantasioso onde estamos em casa mas não nos sentimos em casa, aquela região distante e nebulosa em algum ponto entre o começo e o fim? Transição. Lavori in corso, trabalho em andamento. Acho que sim. Mas os princípios são seu forte, esqueceu? A mulher com uma vida digna de um conto de fadas, esqueceu-se disso também?
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Ele a vê do outro lado do aposento e sabe que é ela… não é essa a fantasia de todas as mulheres? Então, em uma minúscula igreja medieval, com sua fachada de tijolos vermelhos diante da laguna veneziana, no crepúsculo opala das chamas de centenas de velas e da fumaça almiscarada de incenso, eu me casei com ele e vivi mil dias em Veneza. Nove anos de páginas esvoaçaram até agora e, esta noite, estamos nos instalando no salão de baile recém-reformado de um palazzo do século XVI, em uma cidadezinha nas colinas da Úmbria… é, uma vida de conto de fadas. Com direito a sua cota de demônios, sustos e tropeções no escuro.
A fantasia de toda mulher é a própria vida real. Somos muito parecidas, todas nós. Apesar do crepúsculo opala e da troca de olhares no salão.
Como todo mundo, tenho direito a me questionar, certo? Tenho direito ao temor sem nome, ao coração palpitante. Até mesmo a uma crise de sete anos entre mim e Fernando, vinda com certo atraso. Há algum problema em Camelot, algum tremor sob o solo? Mesmo o mais puro dos amores é inconstante. Outra característica da condição humana. Resistimos, rejeitamos e raramente reconhecemos nossa inconstância. Como se fosse um pecado vacilar, sentir insegurança, se cansar, fechar a porta. Trancá-la. Mas não é isso. Você sabe que não. O que quer que seja este temor sem nome, ele é só meu. Sou eu e as Moiras. Jesumaria, o que está acontecendo comigo?
Há quanto tempo comecei a compreender que não é a vontade nem são os atos, nem os méritos, nem os pecados que dão forma a nossas vidas? Foi quando perguntei para a irmã Mary Paul por que eu seria punida, quando outra era a desonesta?
– É o destino – respondera ela, retirando o lenço do esconderijo de sempre, em uma de suas mangas, assoando o nariz de um jeito que produzia o ruído de um navio que parte e depois recolocando o lenço no mesmo lugar. O destino, minha criança.
– O destino é a mesma coisa que Deus? – perguntei.
– Acho que Deus é outro nome para o destino. Um de seus muitos nomes. Destino é um nome mais antigo.
– Então por que não oramos para o destino?
– Porque Deus é um ouvinte mais atento.
Estávamos de pé na pequena cela que era seu escritório e cheirava a cera de polir, tinta e a galhos carregados de maçãs verdes que invadiam a janela aberta. Ela se sentou na cadeira diante da escrivaninha, em vez de escolher a maior, que ficava atrás, e me puxou, para que eu sentasse em seu colo. Eu podia ver bem os pelos castanhos de seu buço, arrepiados como os de um gato, e de perto ela parecia mais triste do que quando estava mais longe.
– Então o destino é um santo? – perguntei.
– Não, não é um santo.
– É como um demônio?
– Também não é como um demônio, nada parecido com um demônio, embora às vezes…
– Às vezes o quê?
Eu tentei não olhar para o buço da irmã, mas foi impossível.
– O destino não é fácil de explicar – disse ela.
– Como os milagres, os mistérios e aquelas coisas na Bíblia?
– Ele é parecido com aquelas coisas.
– Sei. É a fé, de novo. Só acreditar sem perguntar tantas vezes por quê?
– Creio que seja assim.
– Mas isso me incomoda. Nem tanto o que aconteceu hoje de manhã, mas sobre Jesus. Entendo a parte em que ele era um bebê, quando la Madonna forrou seu berço com palha, cantou para ele e todos os animais vieram se deitar perto dele. E quando cresceu, era gentil e bondoso e mesmo assim aqueles soldados o mataram, fazendo la Madonna chorar. Por que Deus não ajudou Jesus? Se Deus pode fazer qualquer coisa, então por que Ele…?
– É mais um “por quê”, não é?
– É o mesmo de por que Deus não me ajudou hoje de manhã?
– Não acredito que seja. Hoje de manhã foi…
– O destino? Então o destino é mais forte do que Deus?
– Não sei, minha criança. Acho que os dois são o mesmo. Não creio que nos seja permitido saber.
Eu não me lembro sobre o que mais conversamos, mas por muitos anos, e às vezes até hoje, desejei ter tocado em sua mão naquele dia. Em seu rosto. Mesmo quando criança eu sabia que eu ficaria bem, mas me perguntava se ela também iria ficar, se é que um dia esteve bem.
Então aos 6 anos, sentada no colo da irmã Mary Paul, fui apresentada ao destino. Os fios da vida já estão sendo tecidos, não? Aguente firme e deixe a vida criar sua própria forma. No entanto, existem aqueles pequenos espaços que as Moiras nos designam. Aquelas estreitas canaletas entre uma coisa e outra. Faça um bom trabalho. Faça o bastante. Depois faça mais.
Então é o bastante? Todo esse saltitar sobre velhas pedras de um caffè para um bar, de uma lojinha querida para outra… atravessando o rio e o bosque, brincando de coletar, a camponesa chique em saia de tafetá verde-água, usando o antigo cardigã de Barlozzo? Minhas mãos de fornarina enfiadas em suas luvas cortadas. É o bastante? Não sei como avaliar essas coisas que fazem com que eu seja quem sou. Se eu pudesse me olhar em um espelho menos generoso que o meu, quem eu veria? Uma mulher diferente daquela que conheço? Daquela que se tornou um tanto divertida com a idade, vestida para um papel em La Bohème enquanto vai à feira, arrumando a mesa de jantar em um trigal, procurando ouvir um rouxinol, as mãos na farinha, os pensamentos nas nuvens, calculando o tempo de tudo em um dia, em uma noite, de modo a não perder as mudanças da luz. Depressa. A luz não vai esperar, você sabe.
Volto para a balaustrada e me debruço para procurar Fernando. Acendendo os cigarros um do outro, ele e seu amigo estão entretidos na conversa. Observo a neve úmida pingando nas pedras, o som de uma corda de harpa em tom menor. Eu me pergunto quem era ela, a mulher que olhou dessa balaustrada antes de mim. Esperando com alegria, horror e aflição. Aquela que subiu os 28 degraus em um vestido renascentista com a bainha enlameada. Aquela no vestidinho preto com uma estola de arminho e um chapéu com um véu. Em idade de casar, feia, decrépita, radiante, alisando as saias, beliscando as bochechas, arrancando os cabelos, eu me pergunto. E como chegou a minha vez de ficar aqui para dar a mão a fantasmas neste lugar devastado e tão silencioso, a não ser pelo som da corda de harpa e a voz abafada de meu consorte? A fera ainda dilacera meu peito.
As Moiras. Alisando as saias, beliscando as bochechas, arrancando os cabelos, quanto de alegria, horror e aflição elas destinaram para mim?
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Fernando subiu o primeiro lanço da escada e dali me disse:
– Giovanni precisa de um pouco de vinho e que alguém carregue suas coisas do magazzino. Não está se sentindo muito bem. Entre. Vou subir daqui a alguns minutos.
Eu o observo da balaustrada e lhe digo para não se apressar. Quando estava atravessando o portone, ele se vira.
– Aliás, Giovanni disse que Neddo passou por aqui e pediu para avisar que vai estar de volta às sete, mais ou menos. Ele estava com um primo ou algo assim. Giovanni não sabia exatamente quem era.
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Neddo retira uma garrafa de tinto de cada bolso do agasalho e um saco de papel do bolso interno. Ele lança o conteúdo do saco através do umbral.
– Sale. Para afastar os fantasmas.
– Já pendurei ramos de alfazema em cada porta para acolhê-los.
Ele nos abraça ao mesmo tempo.
– Tanti auguri – repete ele várias vezes. – Muitas felicidades.
– Ah, lui si chiama Biagio. – Neddo apresenta seu companheiro. – Chou, Fernando, apresento-lhes um membro de minha família toscana. É o marido de minha irmã Giorgia.
Pequenino, bronzeado como o trigo de agosto, Biagio também traz garrafas nos bolsos. Eu acho graça por ter imaginado como passaríamos nossa primeira noite oficialmente em casa, no número 34.
Neddo falou com Miranda que falou com Tilde. Não, ele não teve notícias de Barlozzo, mas acha que viu sua caminhonete estacionada perto da scuola materna, quando ele e Biagio passaram por lá. Começo a calcular. Temos feijão. Também pão. Metade de uma finocchiona, salame da Toscana perfumado com erva-doce silvestre. Peras assadas. Vai dar tudo certo.
Batidas na porta. Barlozzo carrega o vinho que vai presentear dentro de uma sacola plástica pendurada em seu ombro, como se uma criança abandonada dormisse lá dentro. Miranda coloca, com delicadeza, uma caixa de madeira com frutas em meus braços estendidos.
– Piano. Piano – adverte.
Sopa de castanhas e porcini em uma tigela coberta por um prato e envolta em um pano de prato. Coelho assado recheado com linguiça.
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Neddo trata o cunhado com deferência e Barlozzo faz o mesmo. Dessa forma Biagio se destaca à mesa, ao fogo. Como seu pai e seu avô no passado, ele é o fattore, o feitor, de uma grande propriedade na região oeste da Toscana – Il Castelletto. Ele é um grande contador de histórias; seu repertório de causos – não importa onde comecem ou terminem – parece girar em torno de uma mulher. A mesma mulher. Uma mulher chamada Antonia.
– Os pais dela eram lavradores em uma pequena propriedade das colinas Lunigianan. Antonia era alta, de corpo bem-feito, cabelos escuros e rebeldes, aos 17 anos; eu tinha apenas 9 na época, mas me lembro como ela era naquele tempo e posso lhe contar. Ela foi cortejada pelo signor Tancredi, filho caçula de meus patrões, os de Gaspari, e eles acabaram se casando. O matrimônio da filha de um lavrador com um filho da nobreza. Não se falou de outra coisa em seis vales durante muitos dias. Não, não é verdade. De forma alguma. O falatório não terminou depois de dias. Nem mesmo depois de anos. A verdade é que mesmo depois de todo esse tempo, com as guerras e as epidemias, nascimentos e mortes, amores e traições e tudo mais que aconteceu, as pessoas continuam a falar sobre Antonia. Ela é um personaggio, uma espécie de heroína, uma anti-heroína. Voluntariosa, excêntrica, bela. Ainda é bela. Santa padroeira, sereia, rebelde, fanática, uma para cada momento. De qualquer maneira, ela é completamente toscana. Assim como suas filhas. Ela tem duas: Filippa e Luce. E elas também têm filhas. As de Filippa se chamam Viola e Isotta; a de Luce é Sabina. Isotta também tem uma filha, Magdalena. Sete mulheres. Quatro gerações. Todas elas são amazonas de olhos azuis e moram juntas naquele palacete com… vocês vão ver por si mesmos um dia desses. Espero que sim.
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Nossos queridos amigos partiram. Fernando está no terraço fumando o último cigarro da noite e eu sirvo a saideira, conhaque em duas minúsculas taças de prata. Recosto-me nos azulejos mornos diante do fogo para esperá-lo. Penso em Antonia. O que o pequeno Biagio disse dela? Uma santa, uma fanática? Uma sereia. Disse que é bela. Pergunto-me quanto de alegria, horror e aflição as Moiras lhe destinaram. Acho que ela não sentiu as garras de uma fera dilacerando seu peito. Ou será que sentiu?