Os Novos Donos do Brasil
Era o prenúncio de tempos sombrios. No dia 15 de junho de 1532, uma frota portuguesa constituida por dez caravelas e outros navios partiu de Lisboa com destino a Roma. Sua missão era conduzir o bispo D. Martinho para a Itália, onde ele seria embaixador de Portugal junto à cúria romana. Em sua gestão, D. Martinho iria tratar da instalação da Inquisição em Portugal – um clamor do clero e da nobreza, que pressionava o rei D. João III. Circunstâncias inesperadas fariam com que aquela poderosa armada não só viesse a desempenhar um papel muito diferente daquele ao qual fora destinada como a vinculariam decisivamente aos destinos do Brasil.
Na primeira semana de agosto, em meio à sua jornada para Roma, a frota ancorou em Málaga, porto espanhol no Mediterrâneo. Após se reabastecer, a esquadra se preparava para seguir viagem quando uma nau de bandeira francesa aportou no mesmo ancoradouro. Os portugueses desconfiaram que o navio estivesse chegando do Brasil, onde, há mais de duas décadas, os franceses se dedicavam ao rendoso tráfico de pau-brasil – uma atividade que os lusos consideravam ilegal e que, de fato, constituia um flagrante desrespeito ao Tratado de Tordesilhas.
Em 1494, castelhanos e portugueses tinham dividido o mundo entre si. Alijados daquela partilha, os franceses não aceitavam a validade jurídica dos acordos firmados na pequena cidade de Tordesilhas. O principal alvo de seu assédio ao Novo Mundo era justamente o desguarnecido litoral do Brasil.
Portanto, assim que viram a embarcação ancorar em Málaga, os portugueses armaram um estratagema para capturá-la. A nau se chamava A Peregrina e pertencia ao nobre francês Bertrand d’Ornesan, barão de Saint Blanchard – almirante que chefiava a esquadra francesa do Mediterrâneo. O comandante do navio era Jean Duperet, um comerciante de Lyon.
Ao saber que a tripulação de A Peregrina precisava de víveres, o capitão da frota portuguesa, Antônio Correia (filho do navegador Aires Correia, que fora companheiro de Cabral no descobrimento do Brasil) forneceu-
-lhes trinta quintais (cerca de 1.800 quilos) de biscoitos salgados e se ofereceu para escoltar a nau até Marselha. Os franceses aceitaram ambas as propostas. No dia 15 de agosto, quando os navios estavam em alto-mar, nas alturas da costa da Andaluzia, na Espanha, Correia – sob o pretexto de estudar a melhor rota – chamou a seu navio os pilotos e mestres de todas as embarcações da frota, incluindo o capitão e os oficiais de A Peregrina. Ao chegarem a bordo da nau capitânia, os franceses foram imediatamente presos.
Os portugueses, então, espantaram-se com o que viram nos porões de A Peregrina. O navio estava atulhado com 15 mil toras de pau-brasil, três mil peles de onça, 600 papagaios e 1,8 tonelada de algodão, além de óleos medicinais, pimenta, sementes de algodão e amostras minerais. Mas os lusos ficariam ainda mais perturbados ao descobrirem os feitos que a tripulação de A Peregrina havia realizado durante sua estada de quatro meses no Brasil.
Com 18 canhões e 120 homens a bordo, entre marinheiros e soldados, A Peregrina havia partido de Marselha em dezembro de 1531. Em março do ano seguinte, a nau aportara diante de uma feitoria portuguesa instalada em Igaraçu, no litoral de Pernambuco, quase em frente à ilha de Itamaracá. Como aquele entreposto estava guarnecido por apenas seis soldados, os franceses não tiveram dificuldades para tomá-lo e instalar-se nele.
Após fortificar a antiga feitoria com vários canhões, o capitão Duperet partiu do Brasil, em junho de 1532, deixando no forte 70 soldados, sob o comando de um certo senhor de La Motte. Embora essas notícias ainda não tivessem chegado à Europa, no exato instante em que A Peregrina era apreendida no Meditarrâneo, o capitão português Pero Lopes de Sousa já estava combatendo os franceses em Pernambuco e logo iria retomar a feitoria de Igaraçu, prender os soldados franceses e enforcar La Motte.
A espetacular captura de A Peregrina foi a gota d’água nas relações entre Portugal e França no que concerne ao Brasil. Ao serem informados da missão que A Peregrina realizara em Pernambuco, o rei D. João III e seus assessores concluíram que todas as ações repressivas e os vários tratados que tinham firmado com os franceses não haviam sido suficientes para impedir o assédio dos traficantes de pau-brasil ao litoral brasileiro. Como todos os acordos e ameaças tinham redundado em fracasso, o rei e seus conselheiros perceberam que só lhes restava uma solução: colonizar o Brasil.
Iria se iniciar o período das capitanias hereditárias.
A divisão do Brasil em capitanias hereditárias não seria apenas a primeira tentativa oficial de colonização portuguesa na América. Aquela estava destinada a ser também a primeira vez que os europeus iriam se lançar no ousado projeto de transplantar seu modelo civilizatório para as vastidões continentais do Novo Mundo.
Um século antes, os próprios portugueses já haviam transformado as ilhas do Atlântico (os Açores e a Madeira) em protótipos de sua experiência colonial. A partir de 1470, o mesmo processo se repetiu nas ilhas de São Tomé, Príncipe e Fernando Pó, localizadas diante da costa da Guiné, na África equatorial.
Enquanto a experiência nas ilhas florescia, os lusos fundaram o Castelo de São Jorge da Mina, seu primero grande estabelecimento colonial no continente africano. A chamada “Casa da Mina”, erguida em 1482, em Gana, nas proximidades da atual cidade de Acra, logo se transformou em um poderoso entreposto comercial fortificado. A partir do Castelo da Mina e da ilha de São Tomé os portugueses lançaram as bases de um rendoso tráfico escravagista que iria se prolongar por três séculos. Mas o clima insalubre jamais permitiu que os lusos se estabelecessem plenamente tanto na Mina quanto em São Tomé – pelo menos não como colonos.
De fato, foi somente com a partilha do Brasil, feita entre março de 1534 e fevereiro de 1536, que a implantação do modelo português de colonização ultramarina se iniciou nos trópicos. Mais de trinta anos já se haviam passado desde que Pedro Álvares Cabral tomara oficialmente posse do Brasil em nome da Coroa lusa. Mas, até então, o vasto território localizado na margem ocidental do Atlântico estivera virtualmente abandonado, entregue quase que exclusivamente nas mãos de náufragos e degredados portugueses e espanhóis, e intensamente percorrido por traficantes franceses de pau-brasil.
O modelo de colonização utilizado no Brasil já era bem conhecido pelos portugueses e fora testado anteriormente: não só nas ilhas do Atlântico, mas, quase dois séculos antes, no próprio território luso, especificamente no Alentejo e no Algarve, após essas regiões do sul de Portugal terem sido tomadas aos mouros durante a Reconquista cristã.
Como aconteceu nos dois casos anteriores, o Brasil foi dividido em vastas áreas chamadas de “donatarias”, ou “capitanias hereditárias”. Na América, esses lotes eram enormes: tinham cerca de 350 quilômetros de largura cada, prolongando-se, em extensão, até a linha estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas, em algum lugar no interior ainda desconhecido do continente. As capitanias brasileiras possuiam, dessa forma, dimensões similares ou mesmo superiores às das maiores nações europeias.
Ao contrário do que ocorrera no reino e nas ilhas do Atlântico, dessa vez não houve interesse da alta nobreza lusitana em se associar ao projeto. No Brasil, não foram infantes, duques ou condes que receberam as imensas e selvagens extensões que deveriam ser colonizadas com recursos próprios. Os quinze lotes, perfazendo doze capitanias, acabaram nas mãos de membros da pequena nobreza: militares ligados à conquista da Índia e da África e altos burocratas da corte, até então vinculados à adminstração dos longínquos territórios do Oriente.
Dos doze capitães-donatários agraciados com terras no Brasil, sete eram conquistadores que haviam lutado na Índia (e, em alguns casos, na África). Outros quatro, como os chamou o historiador norte-americano Alexander Marchand, eram “criaturas do rei”:1 funcionários graduados – tesoureiros ou fiscais – responsáveis pela administração dos negócios ultramarinos. A exceção era Pero de Góis, que não lutara na Índia nem na África mas que podia ser enquadrado no grupo dos militares, já que chegou ao Brasil em 1531 como um dos capitães da expedição de Martim Afonso de Sousa.
Dos doze donatários, somente quatro já haviam estado no Brasil anteriormente e, ao todo, apenas oito iriam tomar contato pessoal com as terras que receberam. Isso significa dizer que quatro capitães-donatários jamais puseram os pés na colônia e sequer conheceram suas
imensas propriedades.
De qualquer forma, postos em prática pessoalmente ou a distância, os projetos de colonização resultaram, quase sem exceção, em retumbante fracasso. Os donatários que não pagaram por seus erros com a própria vida perderam (e jamais recuperaram) as fortunas que foram adquiridas no reino ou na Índia.
Do rei, os donatários não recebiam mais do que a própria terra e os poderes para colonizá-las. Embora tais poderes fossem “majestáticos” – como definiu o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen –, a tarefa se revelaria demasiadamente pesada. Ninguém resumiria melhor as aflições dos donatários do que o mais bem-sucedido deles: em carta ao rei
D. João III, enviada de Pernambuco em dezembro de 1546, Duarte Coelho escreveu: “Somos obrigados a conquistar por polegadas a terra que Vossa Alteza nos fez mercê por léguas.”
Não é de se estranhar, portanto, que apenas duas das doze capitanias tenham florescido. Foram elas Pernambuco e São Vicente. São Vicente, porém, conseguiu se desenvolver sem a presença ou o estímulo de seu donatário, Martim Afonso de Sousa – mais interessado em fazer carreira na Índia. O crescimento dessa capitania foi fruto quase exclusivo da ação de homens que se viram abandonados no longínquo litoral sul do Brasil. Praticamente todos eles se transformaram em grandes traficantes de escravos indígenas, e foi dessa forma que não só obtiveram seu sustento como construíram suas fortunas.
O fracasso do projeto como um todo não impediu que o legado das capitanias hereditárias fosse duradouro. A estrutura fundiária do futuro país, a expansão da grande lavoura canavieira, a estrutura social excludente, o tráfico de escravos em larga escala, o massacre dos indígenas: tudo isso se incorporou à história do Brasil após o desembarque dos donatários.
Alguns dos grandes latifúndios brasileiros de fato tiveram origem nas vastas sesmarias concedidas aos colonos de estirpe mais nobre. A monocultura da cana de açúcar também se mantém em muitas áreas do Nordeste brasileiro. Quanto ao trabalho escravo, sua influência na formação do país foi tamanha que o Brasil se tornou uma das últimas nações do Ocidente a abolir a escravatura.
As capitanias hereditárias configuraram também uma nova tentativa de Portugal de lançar as bases de um modelo colonial baseado na lavoura canavieira – repetindo o método que fora empregado nas ilhas do Atlântico. Ainda assim, como se verá, isso só ocorreu depois que o sonho de obter, a partir do sul do Brasil, as mesmas riquezas minerais que os espanhóis tiveram a ventura de encontrar no México e no Peru revelou-se apenas uma vertigem.
Não restam dúvidas de que, desde o momento de seu desembarque, tanto os donatários quanto seus colonos visavam o lucro imediato. O principal – e quase único – objetivo da maioria era enriquecer o mais rápida e facilmente possível e retornar para Portugal. Nesse sentido, os homens que os donatários trouxeram para ocupar suas terras não eram “colonos” no sentido literal da palavra: eram conquistadores dispostos a saquear as riquezas da terra – especialmente as minerais.
Não foram apenas donatários e colonos que desembarcaram no Brasil a partir de março de 1535. Com eles começaram a vir também, em grande escala, os degredados, condenados a cumprir suas penas na remota colônia sul-americana. Embora considerados pelo donatário Duarte Coelho como “a peçonha que envenena a terra”,2 foram eles que deram início à ocupação mais intensa do território e se tornaram responsáveis pela miscigenação dos portugueses com nativos e por sua adaptação ao novo meio no qual se viram instalados.
Gerando, com suas concubinas indígenas, mamelucos às centenas, explorando os recursos naturais da terra, adotando os costumes e a alimentação dos nativos – e aprendendo com eles tudo o que podiam sobre a realidade física do Brasil –, os degredados ajudaram a tornar a vida cotidiana dos europeus no trópico mais eficiente e menos árdua. Mas não há dúvidas de que foram também os principais responsáveis pelos distúrbios que levaram várias capitanias à ruína.
Como a aplicação das leis era atribuição exclusiva do donatário, as ordens dadas por eles só valiam dentro de seus próprios lotes. Assim sendo, ao homem que cometesse um crime em uma determinada donataria restava sempre a opção de refugiar-se noutra, na qual era inocente. Dessa forma, alguns degredados puderam – como protestou, em carta ao rei, o mesmo Duarte Coelho – “envenenar” a terra toda.
Os “saltos” organizados pelos degredados com o objetivo de capturar indígenas foram o estopim que deflagrou conflitos entre os nativos e os brancos. A partir de 1546, esses conflitos tomaram tal dimensão que atingiram e devastaram seis das oito capitanias nas quais os lusos haviam se instalado (os quatro lotes restantes não haviam sido ocupados).
Embora também usassem os indígenas para seu próprio benefício, os degredados capturavam escravos basicamente para vendê-los aos senhores de engenho. De fato, a implantação da lavoura canavieira no Brasil e o início das guerras entre nativos e portugueses se deu de forma tão simultânea que se impõe estabelecer entre ambos uma relação de causa e efeito.
Nas três primeiras décadas da ocupação europeia do Brasil, lusos e franceses serviam-se do escambo para obter os serviços dos nativos. Em troca de bugigangas (anzóis, espelhos e machados), os indígenas cortavam, desbastavam e transportavam toras de pau-brasil – a primeira, e durante 30 anos, única fonte de renda que os europeus encontraram no Brasil. Quando os portugueses começaram a plantar seus canaviais e instalar seus engenhos, o trabalho organizado e regular nas lavouras tornou-se uma necessidade primordial para eles. Ao recorrer à escravização em massa dos indígenas – que, às vezes, não poupou nem antigos aliados –, colonos e degredados provocaram a insurreição generalizada das tribos Tupi.
Mas a revolta dos indígenas também foi insuflada pelos franceses, rivais dos portugueses na luta pelo posse do Brasil. Os acordos diplomáticos firmados entre as duas Coroas, na Europa, nunca foram capazes de impedir o assédio progressivamente audacioso dos traficantes franceses de pau-brasil – o principal motivo que, após a captura de A Peregrina, levara D. João III a dividir o Brasil em capitanias.
Cerca de dez anos depois de as capitanias terem sido criadas, as desordens internas, as lutas contra os nativos e a ameaçadora presença dos franceses acabaram provocando o colapso definitivo do sistema que o rei e seus conselheiros tinham optado por aplicar no Brasil.
Nada pode ser mais revelador do fracasso das capitanias do que as agruras que o destino reservou para os capitães do Brasil. Um deles, Aires da Cunha (do Maranhão), morreu em náufragio; outro, Francisco Pereira Coutinho (da Bahia), foi morto e devorado pelos Tupinambá. Um terceiro, Pero do Campo Tourinho (de Porto Seguro), acusado de heresia, foi preso por seus próprios colonos e enviado para a Inquisição. E houve ainda o caso de Vasco Fernandes Coutinho, que – viciado em tabaco e “bebidas espirituosas”3 – perdeu o controle sobre a capitania do Espírito Santo, onde investira todos os seus bens. Ao morrer, em Portugal, não tinha nem mesmo “uma mortalha que o cobrisse” e sua mulher e os filhos acabaram seus dias desamparados, num hospital de caridade.
Eis a história de que este livro vai tratar em minúcias. E, embora ela seja extraordinariamente rica em peripécias, com certeza também foi trágica.