Prólogo
Eu nasci dentro da cozinha. E cresci acompanhando a nouvelle cuisine de perto. Não sei se por rebeldia ou apenas curiosidade, se por mera obra do acaso ou como resultado do meu espírito aventureiro, larguei o conforto de trabalhar no restaurante da família e acabei vindo parar no Brasil. Deixei a nova cozinha para encontrar o Novo Mundo. Cheguei, me apaixonei e por aqui fiquei.
Cozinha, para mim, é mais que um lugar. É a conjugação do verbo mais presente na minha vida: adoro cozinhar! É uma satisfação falar de comida, pesquisar ingredientes e viajar para comer. Ao longo do tempo, a rotina diante de panelas e fogões, convivendo com chefs conhecidos e anônimos, com produtores de alimentos e de utensílios, me fez colecionar não só um monte de amigos, mas também dicas, curiosidades e histórias, muitas histórias. E alguns segredos.
Tem sido uma longa e saborosa jornada. Desde meus primeiros passos – na verdade, engatinhadas – em Roanne, no restaurante dos Troisgros, até a inauguração do Le Blond, meu mais novo “filho”, já se vão mais de 60 anos. Só de Rio de Janeiro são quase 40.
Acompanhei uma série de mudanças neste universo de sabores e saberes: vieram as cozinhas de “fusão”, as escolas de culinária de vanguarda, chamada por muitos de molecular, até que chegou a hora de olhar um pouco mais para trás, buscando pratos e conceitos ancestrais.
Sinto um orgulho imenso de fazer parte dessa história e de participar dessa nova cozinha brasileira desde o início, ao lado de tantos chefs jovens e de grande talento e expressão. E vou continuar trabalhando para ver o amadurecimento da gastronomia deste país maravilhoso que eu escolhi para viver. Quero seguir dando prazer às pessoas quando sirvo a minha comida, conto as minhas histórias, dou as minhas dicas e revelo alguns segredos e truques da cozinha.
Que marrrrrrravilha!
Merci à tous.
Introdução
Sempre que me perguntam em entrevistas, programas ou mesmo em conversas informais o que é necessário para saber cozinhar bem, para fazer uma comida boa, respondo que são necessárias duas coisas – que na verdade são as mesmas para qualquer arte, seja ela pintura, música, teatro, dança… ou as artes culinárias.
A primeira delas é a técnica; e a segunda, a sensibilidade. A técnica se aprende, como em qualquer outra profissão. Ser cozinheiro significa ser um artesão. É um ofício manual, em primeiro lugar. Do mesmo modo que são necessários conhecimentos específicos para – por exemplo – construir uma parede ou esculpir em mármore, para preparar uma boa comida você tem que conhecer as bases, os fundamentos, as linhas gerais, incluindo equipamentos e ingredientes. É necessário entender o que precisa fazer e como deve fazer.
Já a sensibilidade é algo mais complexo. Qualquer pessoa consegue preparar pratos seguindo o passo a passo, mas fazer comida boa, repetidas vezes, requer algo mais. É aquela condição sine qua non. O fator sem o qual ninguém se torna um grande cozinheiro. Isso significa um conjunto de qualidades: conhecimento das técnicas, dos materiais e receitas; rigor e disciplina; capacidade de improvisar; imaginação; e respeito pelos ingredientes. Um grande chef reúne tudo isso.
Assim como grandes mestres da pintura, ao conhecer os princípios de uma arte você ganha independência para se desenvolver nela. Sabendo como usar os instrumentos, como escolher e conservar produtos, utilizar temperos, misturar e combinar alimentos, você entende melhor o que é cozinhar e passa a fazer isso com mais desenvoltura. Assim, cozinhar vira algo fácil e muito prazeroso.
Se eu colocasse apenas receitas aqui neste livro, talvez muita gente fosse simplesmente segui-las, ao pé da letra, mas isso não é necessariamente saber cozinhar. Não adianta você aprender a fazer bem um prato ou dois, ou até mesmo 10, se não for capaz de entender a magia por trás daquela preparação, o que a faz ser saborosa. Qual o segredo? Hoje existem milhares de receitas disponíveis em livros e na internet, com uma profusão de vídeos, inclusive, que mostram minuciosamente cada etapa do preparo de um prato. Não teria sentido eu fazer apenas mais do mesmo.
Este, portanto, não é propriamente um livro de receitas – embora você vá encontrar muitas ao longo destas páginas. É mais do que isso: os textos apresentam vários conceitos sobre as bases da cozinha, os pilares sobre os quais as técnicas se assentam; e mostram também quais foram as minhas origens e experiências com a culinária – e como elas me trouxeram até aqui.
Por meio de histórias e experiências da minha vida e da minha profissão, o leitor vai poder experimentar um pouco de como foi minha formação e meu desenvolvimento como cozinheiro e chef, acompanhando as mudanças no universo da gastronomia, no Brasil e no mundo.
O que eu quero com este livro é que todos, profissionais ou amadores, tenham a oportunidade de entender um pouco mais sobre o que é cozinhar, no que consiste essa paixão, percebendo também, de forma leve e divertida, que há sempre uma história por trás da origem de pratos, técnicas e uso de produtos, pois a cozinha está interligada à cultura.
E a cozinha brasileira naturalmente está relacionada com a nossa cultura gastronômica, com os produtos daqui e com a realidade deste país continental, de patrimônio culinário gigantesco. Não pretendo aqui fazer uma enciclopédia gastronômica, mas apresentar um pouco da minha trajetória para transmitir o espírito da cozinha, a essência de aprontar os alimentos e de traduzir sentimentos em forma de sabores, aromas, texturas, cores e sons de prazer – porque a comida envolve todos os sentidos – quando estamos à mesa.
A culinária tem suas técnicas, mas não é possível aprendê-las em dois ou três dias. É preciso prática. Repetição. Para dominá-las, são necessários anos de atividade, de aplicação, de execução. Dez anos? Vinte ou mais anos? Sim, um cozinheiro está sempre se aprimorando, descobrindo novas técnicas e produtos, criando pratos, revisitando outros. O tempo só ajuda a aprimorar a técnica, e a prática é tudo. Eu aprendo todos os dias.
Mas, como eu disse, não adianta ter apenas técnica e prática, a sensibilidade também é fundamental. Posso até contar em detalhes como temperar e misturar os produtos, mas não consigo ensinar uma pessoa a sentir o sabor, a ter paladar, a saber se algo está realmente bom. Isso é de cada um, nasce conosco, não é algo “ensinável”. Você pode apurar sua sensibilidade, aprimorá-la, mas ela é subjetiva. É como a arte. Eu, por exemplo, estudei saxofone durante 10 anos. Aprendi a técnica, mas não consigo tocar bem, porque me falta “ouvido”!
Com a cozinha é assim também. O cozinheiro precisa ter um paladar apurado, essa sensibilidade para reconhecer sabores e temperos, e eu chamo isso de “boca perfeita”, que seria o equivalente ao ouvido perfeito ou ouvido absoluto da música. Uma pessoa possui boca perfeita quando tem a capacidade de sentir o equilíbrio entre os sabores: o ácido, o salgado, o amargo e o doce. E eles têm que ser balanceados.
Equilíbrio é a palavra-chave. Pensei durante muito tempo sobre isso. Por que, quando estamos entre amigos ao redor de uma mesa, um acha a comida salgada, outro diz que está ácida, e há até quem a considere amarga ou doce? Por que todo mundo não percebe igualmente? Isso acontece porque há uma diferença entre as papilas gustativas, que puxam para um sabor mais que para outro. Por isso, o cozinheiro precisa ter essa sensibilidade “perfeita”, completa, que traz um equilíbrio na maneira como as papilas percebem os sabores e resulta em algo agradável para todos. Isso faz muita diferença, é o que separa um bom cozinheiro de um cozinheiro extraordinário.
Qualquer um pode aprimorar o próprio paladar, é claro. O paladar do brasileiro evoluiu muito nos últimos anos. As pessoas aprenderam a comer melhor, e isso é muito bom. E também estão aprendendo a cozinhar melhor, “amadoristicamente” falando. Cozinhar em casa hoje em dia virou um hobby popular. Tempos atrás era uma coisa de obrigação, de fazer a comida do dia a dia, mas agora estamos falando de prazer, algo possível para homens e mulheres. Virou um divertimento, um momento de relaxamento, para passar horas agradáveis com amigos, com a família, entre panelas. Isso mudou muito o perfil da cozinha caseira.
Os programas de culinária, na televisão e na internet, também contribuem para ajudar a aprimorar o paladar das pessoas, para apurar seu senso de sabor, por oferecerem certa intimidade com as preparações mais sofisticadas. Até as crianças dão sinais disso. Nunca se viu tanta criança que sabe cozinhar, ou que tem vontade de aprender, ou que pretende seguir carreira na gastronomia.
Na área profissional, é claro que também houve avanço. A procura por cursos universitários de gastronomia vem aumentando ano após ano. No entanto, os estudantes entram nesses cursos querendo sair chefs prontos, e isso está errado. Deveriam entrar para ser cozinheiros. Não se aprende a ser chef, se aprende a ser cozinheiro. Chef é um posto, uma função, como a de general, e chegar lá ou não depende de muitos fatores. É uma conquista. Um chef é geralmente alguém com muitos anos de profissão, que já passou por vários estágios de uma cozinha, sabe administrar, sabe se relacionar com as pessoas, sabe comprar, sabe usar produtos e comandar uma equipe, entre tantos outros atributos necessários. Vai além de fazer comida e saber manejar uma panela. Não é todo mundo que se torna um chef.
Ao fazer um curso superior de gastronomia, o aluno aprende as bases, que ensinam a ser cozinheiro e vão permitir que ele entre no mercado. Mas a realidade é outra. Na prática as coisas são mais difíceis e duras: é muito calor, é um trabalho puxado, são horas em pé, é pressão, não dá tempo de jantar… O chef, às vezes, parece maluco, grita… E a escola – muitas vezes – não ensina isso. E nas escolas não há nem clientes comendo!
Acredito que nas faculdades de gastronomia deve-se primeiro aprender as receitas básicas da culinária mundial. É preciso saber preparar os caldos, os molhos e os temperos, e conhecer as preparações clássicas para só depois praticar as receitas mais sofisiticadas, de grandes chefs. Começar pelo fim não funciona muito bem. É por isso que hoje temos alguns cozinheiros bastante criativos, mas que muitas vezes não sabem como fazer um bom caldo de frango. E não se pode esquecer que a base da culinária de qualquer país é a tradição. Quem não conhece a história e a tradição não conhece os fundamentos, e sem isso dificilmente vai conseguir criar algo interessante.
Neste livro você vai encontrar explicações detalhadas sobre produtos e seus usos, os principais equipamentos e técnicas, as preparações básicas e as combinações fundamentais. Com isso, será mais simples conseguir não apenas iniciar seu aprendizado, mas também sofisticar o paladar, apurando sua sensibilidade e conseguindo cada vez mais “tocar de ouvido”, com desenvoltura e jogo de cintura, sabendo lidar com imprevistos e improvisos, inventando e criando.
Ao longo do livro, vou passar a você muitos truques, dicas, toques e segredos de chef. Informações que vão ajudá-lo a cortar caminho nessa estrada, que eu já percorri passo a passo e da qual conheço quase todos os atalhos, o que só a sabedoria da experiência traz. Também reúno aqui muitas histórias de uma vida toda dedicada a essa arte, essa paixão aprendida com meus antepassados em uma família que já cozinha há quatro gerações, e falo sobre minha vivência à frente de vários restaurantes, em diferentes cidades. Como eu digo, tradição traz a base, e a história relembra como tudo começou.