1. O DIA DA LYCRA AZUL
– Pai, eu quero ser campeão mundial.
Gabriel era só um menino de 11 anos de Maresias, em São Sebastião, quando informou em tom solene sua decisão. Vivia à espera das potentes ondulações de Sul que volta e meia avançam sobre a costa do litoral norte de São Paulo, apenas com um short puído, costurado várias vezes pela avó, e uma prancha surrada embaixo do braço. Roía unhas, falava pouco, surfava muito.
A mãe, Simone, desdobrava-se como vendedora de butique e doméstica nas casas de luxo da região. Não se sabe o que a mantinha de pé, depois de tantas rasteiras da vida. Talvez a brisa suave da praia, talvez a religião. E o novo pai, Charles, sujeito reto de caráter firme, lutava para não se afogar em sua lojinha de surfe. A vida era difícil, as dívidas se acumulavam, o esforço era de sobrevivência.
Mas havia algo que sobrava naquela família: a fé.
Diante dos pais, estava um garoto magro, determinado, que odiava perder e já demonstrava ser diferente sobre uma prancha. À mesa de um pequeno apartamento do balneário, tiveram uma conversa séria com o filho. Decidiram mirar num destino até então inalcançável para brasileiros. Teimosos, apostaram a vida num sonho ordinário, comum a vários garotos da idade de Gabriel, mas estranhamente possível para ele. Nascia, ali, uma missão.
Gabriel acorda muito antes do primeiro raio de sol no dia 19 de dezembro de 2014 na ilha havaiana de Oahu. Ele está bem perto de Pipeline.
O primeiro som é o das ondas, que explodem a poucos metros dali. O líder do ranking mundial desce para ver o mar e percebe, sob a luz da lua cheia, sucessivos filetes brancos de espuma a escorrer sobre a rasa bancada de coral.
O oceano pulsa novamente, depois de cinco angustiantes dias de espera por uma ondulação capaz de reiniciar a disputa do Pipeline Masters e, com isso, definir o campeão do mundo da temporada de 2014.
Uma ansiedade incontrolável, histérica, orbita em torno de Gabriel. Torcedores, especialistas, patrocinadores, amigos de verdade, sanguessugas de ocasião, adversários e juízes, todos querem saber se o garoto de 20 anos será capaz de confirmar o que dele se espera desde que entrou no circuito mundial, em 2011, arrombando portas como um raro fenômeno.
As dúvidas sobre a couraça de Gabriel se amplificaram depois da última etapa antes do Havaí, em Portugal, quando o brasileiro tinha tudo para ser campeão do mundo, mas perdeu precocemente, na fase 3, para um dos surfistas mais mal ranqueados do circuito. A derrota em terras lusas levou a decisão para o maior palco do surfe mundial, onde a pressão costuma ser proporcional à potência das ondulações gigantes que atingem as ilhas. Afoga qualquer mortal.
Mas Gabriel está em silêncio, blindado. É o primeiro a acordar na casa da Rip Curl. Ele é assim, quer ser o primeiro em tudo. Sua vontade sempre pareceu maior que a dos outros, e não é diferente agora. Lá também está hospedado um de seus dois adversários na luta pelo título, o australiano Mick Fanning. O outro rival é o americano Kelly Slater, 11 vezes campeão do mundo.
Nos dias de espera pelas ondas preguiçosas, o brasileiro chamou Mick para algumas rodadas de pôquer entre amigos. O australiano, dono de três títulos mundiais e muita serenidade, recusou o convite. Aceitou apenas ser o dealer (aquele que dá as cartas). Bom jogador. Gabriel, como em outras praias, ganhou a maioria das mesas disputadas.
Mick é o maior ídolo da infância do jovem de Maresias. Sua combinação mortal de disciplina, foco e talento é venerada. Mas, na hora do jogo, é cada um por si.
Na parede do quarto do brasileiro, antes de descer para o que seria o dia mais importante de sua vida, Gabriel lê as mensagens pregadas num cartaz por Charles Saldanha, um anjo que se multiplica na função de pai, técnico, cozinheiro, amigo e principal incentivador. São como mantras. As frases, motivacionais ou religiosas, falam de sacrifício momentâneo x glória eterna, exaltam a figura de Deus acima de tudo e revelam a existência de um túnel invisível entre a casa e o mar, um caminho silencioso que só estaria aberto ao surfista.
“Charlão”, como é chamado na intimidade, sabe como proteger o filho. Transformou desde cedo o título numa missão, a vitória em algo sagrado. Ao vê-lo com Gabriel, não há como não lembrar de Larri Passos e do tenista Gustavo Kuerten, ou de Richard Williams e de suas filhas, as tenistas americanas multicampeãs Serena e Venus. À semelhança de outros, o padrasto de Gabriel assumiu a função de pai e técnico, tornando-se fundamental na vida do surfista.
Dias antes, ouvira do experiente Neco Padaratz, talvez o primeiro surfista brasileiro cotado pela imprensa especializada estrangeira como candidato real a um título mundial, a sugestão do túnel.
Neco, dono de duas vitórias na elite, sempre foi um cara diferente, intenso, que parecia vencer quando estava num transe espiritual, tornando-se aparentemente indestrutível. Charles pegou o túnel dele emprestado e, com isso, a blindagem contra todos os movimentos.
A lógica do túnel é clara: não escutar nada que vem de fora. Outros gigantes do esporte buscam ou já buscaram o isolamento. Ayrton Senna costumava mergulhar em seu próprio mundo, dentro do cockpit, antes das largadas dos GPs de Fórmula 1. O tenista espanhol Rafael Nadal mantém, em quadra, uma série de rituais obsessivos de organização, como as garrafas d’água alinhadas, para silenciar em sua cabeça as outras vozes.
Gabriel também tem sua liturgia antes das baterias, mas vale tudo para evitar o assédio, que beira a invasão nos últimos dias no Havaí. Uma repórter de tevê de uma emissora brasileira furou o bloqueio da casa e só parou na porta do quarto de Gabriel. Charles salvou o filho da fúria pelo furo jornalístico.
O havaiano Dusty Payne, especialista nas ondas de Pipeline, em grande forma e líder da prestigiada Tríplice Coroa (circuito à parte que reúne três eventos do mundial realizados exclusivamente no Havaí), é o mais simbólico obstáculo a ser superado. A bateria é eliminatória. Se Gabriel perder, está fora da etapa e deixa as portas abertas para Mick e Kelly lhe tirarem o título da temporada.
O jogo é duro. Dias antes da disputa, durante o jantar num restaurante de Oahu, o shaper (quem faz pranchas) do surfista havaiano se aproximou da mesa, interrompeu a refeição da família Medina e disse, em tom provocativo:
– Dusty está chegando.
Longe dali, um outro caldeirão também ferve. A expectativa no Brasil é incontrolável. Desde que Gabriel venceu a etapa do Taiti, meses antes, em ondas épicas de até 4 metros, destronando o rei Kelly em seu reino, o surfe vive uma explosão de popularidade sem precedentes. As principais emissoras do país mandaram equipes completas para a cobertura das últimas etapas, o surfista estrela anúncios em todas as mídias, celebridades se declaram torcedoras e o grande público, enfim, é apresentado ao esporte. A campanha “Vai, Medina”, com um vídeo de apoio estrelado por famosos, explode nas mídias sociais. Todos estão à espera da consagração de um novo ídolo nacional. É difícil segurar o oba-oba num país acostumado a grandes heróis esportivos.
Charles trabalha na blindagem, mas confia cegamente na capacidade de Gabriel para lidar com pressões insuportáveis. No caminho percorrido desde que chegou à elite, o garoto foi submetido a toda sorte de situações-limite. Encarou e oprimiu lendas do esporte, venceu em mares ordinários e extraordinários, bateu recordes, quebrou tabus e soterrou definitivamente a possível resistência cultural a um campeão mundial de surfe vindo do Brasil.
Gabriel é meio Ayrton Senna também na relação com os adversários. Sua elevadíssima autoestima o livra de qualquer traço do velho “complexo de vira-lata” comum a alguns esportistas. A expressão, criada por Nelson Rodrigues depois da derrota da Seleção Brasileira de futebol em 1950, em pleno Maracanã, identifica o sentimento de inferioridade de um estereótipo de brasileiro a que o dramaturgo se refere como “o narciso às avessas, que cospe na própria imagem”.