O discreto charme do intestino | Sextante

O discreto charme do intestino

Giulia Enders

Tudo sobre um órgão maravilhoso que controla o nosso corpo e a nossa mente

Tudo sobre um órgão maravilhoso que controla o nosso corpo e a nossa mente

Mais de 6 milhões de livros vendidos.

Você sabia que sobrepeso, depressão, alergias e Alzheimer estão relacionados a distúrbios no equilíbrio da flora intestinal?

Conheça o fascinante universo dos heróis incompreendidos do corpo humano: o intestino e seu poderoso exército de micro-organismos.

 

Muitas vezes ignorado, subestimado e até repudiado, o intestino enfim vem recebendo a devida atenção da ciência e revelando ter grande influência sobre nosso bem-estar físico e mental.

Com muito bom humor e ilustrações divertidas, este livro traz as principais descobertas e teorias para entendermos esse órgão e cuidarmos dele e de todo o nosso sistema digestório, desde a mastigação até a hora de ir ao banheiro.

Além disso, inclui informações comprovadas sobre o eixo intestino-cérebro, que indicam novos caminhos na prevenção e no tratamento de condições como depressão, estresse e Alzheimer.

Você também vai aprender, entre outras coisas:

  • Qual é a verdade sobre a intolerância ao glúten e à lactose
  • O que causa o refluxo e como evitá-lo
  • Qual é a relação entre o intestino e o peso
  • O que são probióticos e se eles realmente funcionam

Com uma linguagem simples e direta, O discreto charme do intestino é ideal para aqueles que buscam um olhar mais amplo a respeito desse órgão que é a essência de todos nós.

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Ficha técnica
Lançamento 07/02/2023
Título original Darm mit Charme
Tradução Karina Jannini
Formato 16 x 23 cm
Número de páginas 256
Peso 350g
Acabamento Brochura
ISBN 978-65-5564-557-6
EAN 9786555645576
Preço R$ 59,90
Ficha técnica e-book
eISBN 978-65-5564-558-3
Preço R$ 34,99
Ficha técnica audiolivro
ISBN 9786555646405
Duração 08h 39min
Locutor Nayara Alves
Lançamento 07/02/2023
Título original Darm mit Charme
Tradução Karina Jannini
Formato 16 x 23 cm
Número de páginas 256
Peso 350g
Acabamento Brochura
ISBN 978-65-5564-557-6
EAN 9786555645576
Preço R$ 59,90

E-book

eISBN 978-65-5564-558-3
Preço R$ 34,99

Audiolivro

ISBN 9786555646405
Duração 08h 39min
Locutor Nayara Alves
Preço US$ 7,99

Leia um trecho do livro

Prefácio

 

Há alguns anos, eu estava em meu quarto de 16 metros quadrados, num apartamento compartilhado, escrevendo um livro sobre o intestino. Naquela época, eu prestava a máxima atenção ao atravessar a rua para não morrer atropelada, pensando: “Aconteça o que acontecer, esse livro precisa existir!” Isso pode soar meio engraçado, pois o primeiro capítulo começa apresentando os dois esfíncteres do ânus. Para mim, no entanto, era mais do que isso.

Conhecer nosso próprio corpo nos dá poder. Um poder amigável. Isso me fascina desde os meus 17 anos, quando tive uma estranha erupção cutânea na perna que não sarava de jeito nenhum. Não demorou para que as feridas tomassem minhas pernas e meus braços. Em vez de cobrir minha pele toda noite com pomada de cortisona e emplastros, comecei a ler mais sobre o corpo humano. Tudo o que eu encontrava sobre pele, sistema imunitário e alimentação me interessava. Quando cheguei ao intestino, fiquei completamente maravilhada. Ele não apenas digere alimentos, mas também treina o sistema imunitário, produz mais de 20 hormônios próprios e abriga trilhões de micróbios (ou microrganismos)! Como eu nunca tinha sabido disso?

Passamos a vida inteira em um corpo que mal conhecemos. Até então, muitas vezes eu chegara a sentir vergonha do intestino. Mas isso mudou: a cada informação nova que aprendia sobre esse órgão, eu ficava impressionada e até grata. Graças a esse conhecimento, finalmente consegui resolver o problema na minha pele. Por experiência própria percebi como é útil compreender melhor cada parte nossa, mesmo as mais inusitadas.

A curiosidade e a compreensão dissolvem a vergonha. Mais do que isso: permitem que tratemos a nós mesmos de forma diferente. De forma mais inteligente, mais bondosa. Quando entendemos que estômago roncando não significa fome, que quando vamos ao banheiro existe uma posição melhor para o funcionamento dos esfíncteres, que o vômito é meticulosamente preparado ou que a depressão surge não apenas na cabeça, de repente todas essas coisas deixam de parecer tão arbitrárias. Tornam-se comportamentos. Nossos órgãos se tornam seres. E se realmente os observarmos com mais atenção, serão nossos aliados.

Depois que comecei a estudar Medicina, passei a contar fatos interessantes sobre o intestino a qualquer um que aparecesse na minha frente. Quando me dei conta, estava escrevendo um livro. Se eu era capaz de escrever um livro? Não fazia a menor ideia! Minha irmã tinha acabado de terminar a graduação e estava empolgada com seu primeiro emprego, mas mesmo assim lia tudo que eu lhe enviava do meu manuscrito e me dava dicas sobre o que sabia de trabalhos criativos. Juntas, mergulhamos nesse mundo – uma escrevendo, a outra ilustrando. Nós nos sentíamos jovens e ingênuas, mas fascinadas com um projeto.

Hoje vejo que essa ingenuidade era não uma fraqueza, mas nossa grande força. Em nossa cabeça, não havia fronteiras nem pesquisa de mercado, tampouco planejamento financeiro ou a ideia de que “o grande público não vai entender isso”. Havia apenas um objetivo: o que estávamos fazendo deveria ser útil. Quando o livro fez sucesso, vimos esse propósito se confirmar.

Então lá estava eu falando sobre o intestino em programas de televisão alemães, franceses, escandinavos e canadenses. Um humorista austríaco me deu cocô de alpaca de presente e uma jornalista portuguesa me confessou que, em 30 anos de vida, nunca tinha ousado olhar para o vaso sanitário. Nas festas, as pessoas me procuravam pedindo dicas para lidar com a constipação. Um professor de química conseguiu controlar a síndrome do intestino irritável testando o consumo de bactérias por conta própria. Uma jovem mãe reconheceu os sinais de apendicite em seu filho. Minha irmã e eu recebemos tantas mensagens de gratidão, apoio e carinho, tantos grãos de kefir e utensílios de banheiro inovadores que já não conseguíamos processar tudo.

Este livro não existiria sem pesquisa. A pesquisa científica é algo singular e grandioso. Uma boa pesquisa pode ser de imensa ajuda quando tomamos conhecimento dela, porém há sempre temas que são tratados a portas fechadas em congressos ou que aparecem apenas em artigos acadêmicos, enquanto há tantas pessoas em busca de respostas. Além disso, atualmente novos conhecimentos brotam do chão como arranha-céus em metrópoles – ninguém consegue ler e menos ainda memorizar tudo que é descoberto diariamente. Desde o lançamento de O discreto charme do intestino, somente no campo das bactérias intestinais foram publicados mais de 100 mil novos artigos científicos. No entanto, para nossa surpresa, permanece atual uma correta compreensão de base – um olhar atento para a questão. Desse modo, em meio a panaceias duvidosas e prescrições extenuantes para o bem-estar, é possível distinguir o que realmente nos faz bem. Por isso, apesar do grande volume de novos artigos científicos, não foi preciso mudar muita coisa neste livro desde seu lançamento original. Fizemos apenas um pequeno acréscimo a respeito do eixo intestino-cérebro e incluímos algumas dicas práticas sobre vegetais fermentados a partir da página 238.

Sempre pensei que fosse possível tratar doenças e ajudar as pessoas a ter uma noção de como funciona o próprio corpo. Agora que sou médica, porém, me surpreende que isso nem sempre seja possível. Não ao mesmo tempo. São atividades distintas, que demandam muito tempo, concentração e atenção.

Eu diria que, por essa razão, apenas hoje entendo o verdadeiro valor deste livro: ele é uma pequena bússola que podemos ter à mão, capaz de nos fornecer um pouco de orientação e, talvez, promover um poder amigável que nos proteja quando atravessamos a rua.

 

 

O mundo é muito mais interessante quando olhamos além do que é visível a olho nu – há muito mais a ser visto. Se observarmos com atenção, uma árvore pode ser mais do que algo em forma de colher. Em uma simplificação grosseira, “colher” é a forma geral que captamos quando olhamos uma árvore: um tronco comprido com uma copa redonda no alto. Ao enxergar essa forma, nossos olhos dizem “coisa em forma de colher”. Mas há as raízes debaixo da terra, que são tão numerosas quanto os galhos. Nosso cérebro deveria estar dizendo algo como haltere, mas não. Grande parte dos dados que o cérebro recebe vem dos nossos olhos, e não é toda hora que esses dados são a ilustração de uma árvore completa em um livro. Assim, ele não está errado em interpretar a paisagem de uma floresta como “colher, colher, colher, colher”.

Ao passarmos “às colheradas” pela vida, deixamos de ver coisas incríveis. Sob nossa pele mesmo tem sempre alguma coisa acontecendo – algo sendo bombeado, absorvido, comprimido ou se rompendo, se reconstituindo, se refazendo. Toda uma equipe de órgãos sofisticados trabalha com tanta perfeição e eficiência que uma pessoa adulta precisa, por hora, de quase tanta energia quanto uma lâmpada de 100 watts. Nossos rins passam cada segundo filtrando nosso sangue meticulosamente – com mais precisão que um filtro de café – e, na maioria das vezes, duram a vida toda. Nossos pulmões foram projetados de maneira tão inteligente que só consumimos energia quando inspiramos – a expiração é totalmente “gratuita”. Se nosso corpo fosse transparente, poderíamos ver como esse mecanismo interno é belo: uma engrenagem como a de carrinhos de fricção, só que em estruturas flexíveis e infláveis. Quanto ao nosso coração, enquanto você está aí pensando Ninguém se importa comigo!, ele está cumprindo o enésimo plantão de 24 horas ininterruptas e teria toda razão em se sentir indignado com esse tipo de pensamento.

Se víssemos mais do que é visível a olho nu, também poderíamos assistir a aglomerados de células no abdome de uma gestante originarem um ser humano. Entenderíamos então que, em termos simplificados, nos desenvolvemos a partir de três “tubos”. O primeiro corta nosso corpo longitudinalmente e tem uma dilatação no meio – é nosso sistema cardiovascular, a dilatação sendo o que dá origem ao coração. O segundo tubo se forma na região dorsal, mais ou menos paralelo ao primeiro, e forma uma bolha que migra para a extremidade superior do corpo, onde permanece – é nosso sistema nervoso, com a medula espinal incluindo o cérebro e uma miríade de nervos que se ramificam por todo o corpo. O terceiro tubo nos percorre de cima a baixo. É o tubo digestório, ou trato gastrintestinal.

O tecido embrionário que dá origem ao tubo digestório é responsável por mobiliar grande parte do nosso interior. A partir dele brotam duas saliências, que vão crescendo e se arqueando para a direita e para a esquerda, até por fim formarem nossos pulmões. Um pouquinho mais para baixo esse tecido forma outra saliência, que vai formar nosso fígado. Esse terceiro tubo também gera a vesícula biliar e o pâncreas. E ele vai se envolvendo em projetos cada vez mais complexos, participando da construção elaborada da boca, formando o esôfago (nosso dançarino de break) e a pequena bolsa que é o estômago, que armazena a comida por algumas horas. Por fim, o tubo digestório cria sua obra-prima: o intestino.

As obras-primas dos outros tubos – coração e cérebro – gozam de muito prestígio. O coração é considerado fundamental para a vida, pois bombeia o sangue pelo corpo inteiro, e o cérebro é admirado por processar incríveis estruturas de pensamento a cada segundo. Enquanto isso, o intestino, aos olhos da maioria, só serve para nos permitir ir ao banheiro. Fora isso, ele fica lá parado inutilmente na barriga, soltando uns gases vez ou outra. Não se sabe quais são suas capacidades especiais. Sim, nós o subestimamos – mais do que isso, nos envergonhamos dele. Só nos causa constrangimento!

Este livro pretende mudar isso. Vamos tentar fazer aquilo que os livros nos permitem realizar de modo tão extraordinário: enxergar além do que é visível. Árvores não são colheres! E o intestino é puro charme!

 

O que acontece quando fazemos cocô?
– e por que é importante fazer essa pergunta

 

Meu colega um dia entrou na cozinha e perguntou: “Giulia, você, que está estudando Medicina, me diga o que acontece quando fazemos cocô.” Certamente eu não começaria minha autobiografia com essa frase, mas posso dizer que essa interpelação mudou minha vida. Fui para o meu quarto, me sentei no chão e comecei a investigar três livros em busca da resposta. Quando a encontrei, fiquei bastante surpresa. Esse ato tão cotidiano era muito mais inteligente e impressionante do que eu poderia imaginar.

O mecanismo de evacuação é uma verdadeira proeza: duas divisões do sistema nervoso trabalham escrupulosamente juntos para descartar nosso lixo da maneira mais discreta e higiênica possível. Quase nenhum outro animal cumpre essa tarefa de modo tão exemplar e ordenado quanto os humanos. Para tanto, nosso corpo apresenta toda sorte de mecanismos e truques. A começar pela sutileza dos nossos mecanismos de fechamento. Todo mundo conhece apenas o esfíncter externo, que conseguimos abrir e fechar intencionalmente, mas existe outro muito semelhante, a poucos centímetros de distância, que não controlamos de maneira voluntária.

Esses dois esfíncteres representam os interesses de duas divisões do sistema nervoso diferentes. O esfíncter externo é o fiel colaborador de nossa consciência. Quando nosso cérebro acha inadequado ir ao banheiro em determinado momento, o esfíncter externo ouve a consciência e se aperta o máximo que consegue. Já o esfíncter interno representa o nosso mundo interno, inconsciente. Ele não está nem aí se a tia Maria gosta de peidos ou não. A única coisa que lhe interessa é nosso bem-estar interno. Os gases estão nos comprimindo? O esfíncter interno quer manter longe de nós tudo que é desagradável. Por ele, a tia Maria peidaria mais vezes. O importante é que a vida dentro do corpo seja confortável, que nada a incomode.

Esses dois esfíncteres precisam trabalhar juntos. Quando os restos da nossa digestão chegam ao esfíncter interno, ele se abre como que por reflexo. Mas não manda tudo de uma vez para o colega de fora se virar; primeiro, só uma amostra. No espaço entre o esfíncter interno e o externo encontram-se várias células sensoriais, que analisam o produto fornecido para definir se é sólido ou gasoso e enviam o resultado da análise lá para cima, para o cérebro. Nesse momento, o cérebro conclui: Preciso ir ao banheiro! Ou talvez só soltar um pum. Então ele faz aquilo em que é melhor: adapta a resposta ao ambiente em que estamos. Para tanto, recebe informações dos olhos e dos ouvidos e consulta seu repertório de experiências. Em questão de segundos surge a primeira avaliação, que o cérebro transmite de volta ao esfíncter externo: Dei uma sondada e estamos na sala da tia Berta. Talvez até dê para soltar alguma coisa, mas só se você conseguir não fazer barulho. Resíduo sólido, melhor não.

O esfíncter externo compreende a mensagem e se fecha obedientemente, mais apertado ainda. O esfíncter interno também recebe esse sinal e respeita a decisão do colega. Unidos, os dois músculos conduzem a “amostra” à fila de espera. Em algum momento ela terá que sair, mas não aqui e agora. Algum tempo depois, o esfíncter interno vai tentar de novo, com mais uma amostra. Se nesse meio-tempo já estivermos bem instalados no sofá de casa, o caminho estará livre!

Nosso esfíncter interno é um cara prático. Seu lema é: o que tem que sair tem que sair. E não há muito o que interpretar nesse lema. Já o esfíncter externo tem sempre que cuidar da parte complicada: teoricamente, até poderíamos usar o banheiro alheio, ou melhor não? Será que meu namorado e eu já temos intimidade suficiente para peidarmos na frente um do outro? Cabe a mim dar esse passo? Se eu não for agora ao banheiro, só vou poder ir à noite, e segurar isso o dia todo pode ser complicado!

Talvez os pensamentos dos esfíncteres não pareçam merecedores do Prêmio Nobel, mas, no fundo, são questões fundamentais da nossa humanidade: qual é a importância do nosso mundo interno para nós e que acordos fazemos para nos entendermos bem com o mundo externo? Um reprime até não poder mais o peido mais desagradável até chegar em casa morrendo de dor de barriga, enquanto o segundo pouco se importa com os outros seres humanos no elevador e se entrega à flatulência sem o menor pudor. A longo prazo, o melhor acordo talvez esteja entre os dois extremos.

Se nos impedimos de ir ao banheiro por muito tempo ou muitas vezes, o esfíncter interno se intimida. Com isso, podemos até alterar seu comportamento. A musculatura ao seu redor e ele próprio são tão disciplinados pelo esfíncter externo que acabam desmoralizados. Se a comunicação entre os esfíncteres se torna glacial, pode acontecer até constipação.

Algo similar pode acontecer às mulheres quando dão à luz, sem que elas exerçam nenhuma repressão intencional à evacuação. Nesse caso, delicadas fibras nervosas através das quais os dois esfíncteres se comunicam podem se romper. A boa notícia é que os nervos podem se recuperar. Seja uma lesão causada no parto ou de outra forma, é possível tratá-la. Uma boa opção é a chamada terapia de biofeedback, realizada por gastroenterologistas, em que os dois esfíncteres que andaram se estranhando fazem as pazes. Uma máquina mede o trabalho realizado em conjunto pelos esfíncteres externo e interno. Se estiverem funcionando bem, o paciente é recompensado com um som ou um sinal verde. É como naqueles programas de televisão em que luzes se acendem no palco e toca uma musiquinha comemorativa quando o participante dá a resposta certa – com a diferença de que acontece no consultório e o participante é um paciente com um eletrodo munido de sensor enfiado no traseiro. Pode parecer esquisito, mas vale a pena: quando os esfíncteres voltam a se entender, a experiência de ir ao banheiro fica bem mais fácil.

Esfíncteres, células sensoriais, consciência e eletrodos no traseiro… meu colega não estava esperando tantos detalhes em resposta. Nem as respeitáveis estudantes de Administração, que nesse meio-tempo tinham chegado à cozinha para comemorar o aniversário dele. Mas a noite foi divertida, e ficou claro para mim que, no fundo, o intestino é um tema que interessa a muita gente. Foram levantadas boas perguntas naquela noite, como por exemplo: É verdade que sentamos errado na privada? Como fazer o arroto sair? Como transformamos bife, maçã e batata frita em energia, enquanto um automóvel só tolera um ou outro combustível? Para que serve o apêndice e por que as fezes têm sempre a mesma cor?

A essa altura, apenas pela minha expressão meus colegas já sabem que estou correndo cozinha adentro para contar as últimas curiosidades sobre o intestino – por exemplo, sobre um banheiro turco minúsculo e de evacuações luminescentes.

 

Estou me sentando corretamente na privada?

 

De tempos em tempos, é recomendável questionar certos hábitos. Estou fazendo o caminho mais agradável e mais curto até o ponto de ônibus? Será que cobrir o cocoruto careca com o que me resta de cabelo é um penteado legal? Ou, justamente, estou me sentando na privada da forma correta?

Nem sempre há respostas claras, mas fazer experiências pode trazer novas perspectivas. Foi o que, suponho, pensou o médico israelense Dov Sikirov. Para um de seus estudos, ele pediu a 28 participantes que evacuassem em três posições diferentes: sentados normalmente em um vaso sanitário comum; semiagachados em um vaso bem pequeno; ou agachados como se estivessem ao ar livre, sem um vaso embaixo. Enquanto isso, ele cronometrava o tempo que levavam e, em seguida, entregava-lhes um questionário para saber como se sentiam. O resultado não deixou dúvida: quando agachados, os participantes levaram em média 50 segundos e se sentiram plenamente esvaziados; quando sentados, levaram em média 130 segundos e a experiência não se mostrou tão bem-sucedida (quanto aos vasos muito pequenos, são sempre muito bonitinhos, não importa o uso que se faça deles).

Como explicar esse resultado? Nosso aparato de oclusão intestinal não foi feito para abrir por completo sua escotilha quando estamos sentados. Existe um músculo que, na posição sentada ou também em pé, cinge o intestino como se o enlaçasse, formando uma prega ao puxá-lo. Esse mecanismo é, por assim dizer, um serviço auxiliar aos nossos amigos esfíncteres. Você talvez conheça esse mecanismo de oclusão em forma de prega por causa da mangueira do jardim: você pede ao seu irmão que vá verificar por que a água parou de sair e, quando ele olha a extremidade da mangueira, você desfaz a prega rapidamente – um minuto depois, seus pais o colocam de castigo.

Voltando à oclusão da extremidade retal em forma de prega: ao chegar ali, o excremento freia, tal como um carro ao virar uma curva. Assim, se estivermos em pé ou sentados, os esfíncteres precisam fazer menos esforço para segurar tudo lá dentro. Se o músculo se soltar, a prega desaparece. O caminho é reto, e fica fácil acelerar.

Desde os primórdios da humanidade, nossa posição natural ao evacuar é de cócoras – essa história de ficar sentado passou a existir apenas com a popularização do vaso sanitário doméstico, no final do século XVIII. No entanto, sei que explicações do tipo “Ah, porque o homem das cavernas…” têm uma imagem um pouco problemática entre os estudantes de Medicina. Quem disse que se agachar relaxa mais o músculo, deixando reta a via de evacuação? Por essa razão, pesquisadores japoneses deram aos participantes de um teste substâncias luminescentes e os radiografaram fazendo suas necessidades em diversas posições. As conclusões foram interessantes. A primeira delas: é verdade, quando nos agachamos, o trato gastrintestinal fica bem reto e tudo sai rapidinho. A segunda: em prol da pesquisa, pessoas legais aceitaram ingerir substâncias luminescentes e ser radiografadas enquanto faziam cocô. Acho as duas coisas muito impressionantes.

Hemorroidas, doenças intestinais (como diverticulite) e até mesmo constipação são problemas comuns apenas em países em que se evacua em uma espécie de cadeira. A razão para isso não é, digamos, a flacidez do músculo, ainda mais se considerarmos que muitos jovens sofrem desses problemas, e sim o fato de que a pressão na extremidade do intestino é muito grande. Algumas pessoas tendem a tensionar toda a musculatura do ventre ao longo do dia quando estão estressadas, muitas vezes sem nem perceber. Para se livrar da pressão no interior, as hemorroidas se projetam para fora do ânus. No caso dos divertículos, quando a pressão interna empurra o tecido do colo para fora, surgem minúsculas saliências em forma de lâmpada na parede do intestino.

Com certeza, nosso jeitinho de evacuar não é a única causa para o surgimento de hemorroidas e diverticulite. Porém é preciso dizer que as populações que evacuam agachadas – mais de 1,2 bilhão de pessoas no mundo – quase não apresentam divertículos e sofrem bem menos de hemorroidas. Já nós ocidentais comprimimos o tecido do reto a ponto de fazê-lo escapar do bumbum e precisamos removê-lo no hospital – tudo isso porque se sentar como um nobre no trono é muito mais “civilizado” do que se acocorar como um bobo? Além disso, a comunidade médica acredita que fazer força demais ou com muita frequência no vaso sanitário eleva sensivelmente o risco de se desenvolver varizes, ter derrames e até desmaiar após a evacuação.

Certa vez recebi a seguinte mensagem de um amigo que passava férias na França: “Esses franceses são loucos! Alguém aqui andou roubando a privada de banheiros de postos de estrada! Paramos em três que não tinham mais vaso.” Não pude deixar de rir, primeiro porque suspeitei que meu amigo estivesse falando sério e depois porque me lembrei da minha reação ao ver pela primeira vez um banheiro turco na França. Por que estou sendo obrigada a me agachar quando poderiam mandar instalar um vaso sanitário?, pensei, choramingando um pouco enquanto me recuperava do choque com o grande vazio na minha frente. Em grande parte da Ásia, da África e do sul da Europa usa-se o banheiro turco, em que se adota a posição de esporte de combate ou de partida no esqui, mas é coisa rápida. Nós, ao contrário, passamos um tempão sentados na privada até concluirmos o que fomos fazer lá. Enquanto isso, lemos jornal, fazemos meticulosas dobras no papel higiênico, observamos quais cantos do banheiro precisam ser limpos ou encaramos pacientemente a parede.

Quando li este trecho para minha família reunida na sala, a reação geral foi de confusão. Quer dizer então que agora vamos ter que descer do nosso trono de porcelana e cagar de cócoras num buraco, numa posição instável com a qual não temos nenhuma prática? A resposta é: claro que não, com ou sem hemorroidas! Eu até acho que seria divertido subir na privada, se agachar e cumprir o que se tem a fazer. Mas isso não é necessário, afinal também é possível ficar de cócoras estando sentado. É uma posição conveniente sobretudo quando as coisas não saem do jeito que queremos, se é que me entende: basta inclinar o tronco para a frente e apoiar os pés num banquinho. Voilà: com tudo no ângulo certo, dá para ler, fazer dobraduras e encarar a parede com a consciência tranquila.

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Giulia Enders

Sobre o autor

Giulia Enders

Giulia Enders é gastroenterologista e conduziu as pesquisas para sua tese de doutorado no Instituto de Microbiologia de Frankfurt. Em 2012, tornou-se um sucesso no YouTube quando foi veiculado um vídeo de sua apresentação no Science Slam, um concurso que premia palestras científicas feitas de forma criativa. O tema do vídeo é o mesmo de O discreto charme do intestino, que já conta com mais de 6 milhões de exemplares vendidos no mundo.

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