Prefácio
Nada é tão fascinante como penetrar no mundo intangível da mente ou da psique. Dentro de cada ser humano há um mapa a ser percorrido com sutilezas, momentos de alegria, períodos de sofrimento, golpes de ousadia, tempos de recuos, pensamentos que transmitem tranquilidade, ideias que causam perturbação.
Ao longo de mais de vinte anos venho desenvolvendo uma nova teoria psicológica e também filosófica, chamada inteligência multifocal, que estuda pelo menos cinco grandes áreas do funcionamento da mente:
- O processo de construção de pensamentos
- O processo de organização da consciência existencial e da estruturação do eu
- Os papéis conscientes e inconscientes da memória e a formação da história intrapsíquica
- O processo de transformação da emoção
- O processo de interpretação e de formação de pensadores
Após desenvolver os pressupostos básicos dessa teoria, envolvi-me em uma das mais desafiadoras pesquisas psicológicas: descobrir por que algumas pessoas romperam o cárcere do tédio, incendiaram a arte de pensar e expandiram a própria inteligência. Depois de estudar o perfil psicológico de alguns pensadores como Nietzsche, Freud e Einstein, resolvi investigar a inteligência daquele que dividiu a história: Jesus Cristo. Na introdução deste livro relato alguns dos enormes desafios e algumas das gritantes limitações que enfrentei nessa jornada.
Em razão da minha origem multirracial (ítalo-judia, espanhola e árabe), por ser um psiquiatra, um pesquisador da mente humana, e por ter sido um dos mais ardentes ateus que já pisaram nesta terra, estudar os enigmas da mente de Jesus Cristo foi e ainda é para mim um projeto espetacular.
Muitas perguntas de caráter científico e não teológico povoaram meus pensamentos durante os anos de análise: Cristo foi real ou fruto da imaginação de alguns galileus? Se não tivesse realizado nenhum ato sobrenatural, teria dividido a história? Como abria as janelas da mente dos seus discípulos e os estimulava a desenvolver as funções mais importantes da inteligência? Como gerenciava seus pensamentos e suas reações emocionais nas situações estressantes? Alguém proferiu na história pensamentos semelhantes aos dele? Quais as dimensões e implicações psicológicas e filosóficas das suas ideias? O que a ciência e as sociedades perderam por não terem estudado a sua personalidade?
Responder a essas perguntas, ainda que parcialmente, é fundamental para a humanidade. Jesus foi o personagem mais complexo e enigmático que transitou neste misterioso teatro existencial.
Seu comportamento, suas palavras, sua capacidade de se proteger nos focos de tensão, a habilidade de libertar seu imaginário e a fineza da sua arte de pensar aplicada a situações em que por certo reagiríamos agressiva ou timidamente deixam perplexo qualquer profissional ou cientista que se disponha a estudá-lo em profundidade – psiquiatras, psicólogos, cientistas da educação, sociólogos. É o que pretendo demonstrar.
Estudar a mente de Jesus Cristo é incomparavelmente mais complexo do que estudar a mente de qualquer pensador da psicologia e da filosofia. O resultado desses anos de estudo é uma coleção de cinco livros que escrevi para tentar explicar as várias facetas de Cristo. Ainda pretendo escrever o sexto livro procurando dissecar seus pensamentos e os enigmas contidos nas parábolas, no sermão da montanha e em outras passagens.
Este é o primeiro livro da coleção. Nele veremos que Jesus foi o Mestre dos Mestres, o maior educador da história. Ele conseguia atingir com delicadeza, sabedoria e perspicácia as regiões mais profundas do inconsciente de seus complicados discípulos. Fico perturbado ao constatar que ele aproveitava momentos incomuns para dar solenes ensinamentos.
Que homem era esse que atuava como artesão da emoção e escultor da inteligência quando o mundo desabava sobre ele? Transformou homens que cheiravam a peixe em homens que exalavam o melhor perfume da inteligência. Fez em pouco tempo o que raramente as universidades conseguiram em séculos de existência.
O leitor precisa saber que nesta coleção não vou defender nenhuma religião nem fazer um estudo teológico. O que quero é mostrar que a ciência cometeu um erro dramático ao não estudar a intrigante, misteriosa e fascinante personalidade de Jesus Cristo. O mundo ocidental se diz cristão, mas conhece pouquíssimo os meandros da sua psique. Se o Ocidente tivesse conhecido a mente de Cristo, não teria sido palco de guerras, discriminação, escravidão e violências sem fim.
Se nas salas de aula (nos currículos acadêmicos) e nos lares se examinassem em profundidade as funções mais importantes da inteligência que Jesus trabalhou amplamente na personalidade dos seus discípulos, a humanidade teria sido outra. Teríamos formado uma casta de pensadores apaixonados pela vida que jamais discriminariam seres humanos, membros da mesma espécie, seja pela cor da pele, raça, cultura, religião, seja pelo status social. Essa omissão foi uma grande perda.
Milhares de leitores, em dezenas de países onde meus livros têm sido publicados, enviam-me mensagens dizendo-se maravilhados não com o autor, mas com o personagem que descrevo. Nunca imaginaram que Cristo fosse tão inteligente e que estimulasse tanto a formação de mentes saudáveis e espíritos livres.
Muitas escolas de ensino médio e universidades têm recomendado aos professores a leitura e a adoção desses livros em diversas disciplinas, com o objetivo de expandir nos alunos a arte de pensar. Psicólogos os têm utilizado e indicado sua leitura a seus pacientes para ajudá-los a prevenir a depressão, a ansiedade e o estresse. Empresários costumam presentear seus melhores amigos e clientes com esses exemplares.
Além disso, apesar de os livros da coleção tratarem de psicologia e filosofia, e não de religião, pessoas das mais diversas crenças, inclusive não cristãs, os têm lido e utilizado sistematicamente.
Devo confessar que investigar Jesus Cristo fez implodir meu orgulho, revelar minha pequenez, dissecar minhas mazelas psíquicas. Veremos que analisar sua inteligência nos permite dispor de excelentes ferramentas para nos educar e educar quem amamos, pois os pensamentos de Jesus oxigenam nossas mentes, expandem o prazer de viver e estimulam a sabedoria.
Embora este livro seja um estudo de filosofia e psicologia, o leitor encontrará, também, referências a trechos do Antigo e do Novo Testamento, com indicação do autor, do capítulo e versículo em que se encontram. Sugiro que, independentemente de sua crença, você tenha uma Bíblia ao alcance da mão. A leitura desses textos, no quadro mais amplo em que se apresentam, promoverá um conhecimento maior dessa figura única e fascinante que com suas palavras, gestos e atitudes revolucionou o mundo e o espírito humano.
Augusto Jorge Cury
CAPÍTULO 1
Características intrigantes da inteligência de Cristo
Brilhando na arte de pensar
A arte de pensar é a manifestação mais sublime da inteligência. Todos pensamos, mas nem todos desenvolvemos qualitativamente a arte de pensar. Por isso, frequentemente não expandimos as funções mais importantes da inteligência, tais como aprender a se interiorizar, a usar as dores para crescer em sabedoria, a trabalhar as perdas e frustrações com dignidade, a agregar ideias, a pensar com liberdade e consciência crítica, a romper as ditaduras intelectuais, a gerenciar com maturidade os pensamentos e emoções nos focos de tensão, a expandir a arte da contemplação do belo, a se doar sem a contrapartida do retorno, a se colocar no lugar do outro e considerar suas dores e necessidades psicossociais.
Muitos homens, ao longo da história, brilharam em suas inteligências e desenvolveram algumas áreas importantes do pensamento. Sócrates foi um questionador do mundo. Platão foi um investigador das relações sociopolíticas. Hipócrates foi o pai da medicina. Confúcio foi um filósofo da brandura. Sáquia-Múni, o fundador do budismo, foi um pensador da busca interior. Moisés foi o grande mediador do processo de liberdade do povo de Israel, conduzindo-o até a terra de Canaã. Maomé, em sua peregrinação profética, foi o unificador do povo árabe, um povo que estava dividido e sem identidade. Há muitos outros homens que brilharam na inteligência, como Tomás de Aquino, Agostinho, Hume, Bacon, Spinoza, Kant, Descartes, Galileu, Voltaire, Rousseau, Shakespeare, Hegel, Marx, Newton, Maxwell, Gandhi, Freud, Habermas, Heidegger, Kurt Lewin, Einstein, Viktor Frankl, etc.
A temporalidade da vida humana é muito curta. Em poucos anos encerramos o espetáculo da existência. Infelizmente, poucos investem em sabedoria nesse breve espetáculo, por isso não se interiorizam, não se repensam. Se enumerarmos os seres humanos que brilharam em suas inteligências e investiram em sabedoria e compararmos esse número ao contingente de nossa espécie, ele se torna muito pequeno.
Independentemente de qualquer julgamento que possamos fazer, o fato é que esses seres humanos expandiram o mundo das ideias no campo científico, cultural, filosófico e espiritual. Alguns não se preocuparam com a notoriedade social, preferiram o anonimato, não se importando de divulgar suas ideias e escrever seus nomes nos anais da história. Porém, suas ideias não puderam ser sepultadas. Elas germinaram nas mentes e enriqueceram a história da humanidade. Estudar a inteligência desses homens pode nos ajudar muito a expandir nossa própria inteligência.
Houve um homem que viveu há muitos séculos e que não apenas brilhou em sua inteligência, mas era dono de uma personalidade intrigante, misteriosa e fascinante. Ele conquistou uma fama indescritível. O mundo comemora seu nascimento. Todavia, apesar de sua enorme fama, algumas áreas fundamentais da sua inteligência são pouco conhecidas. Ele destilava sabedoria diante das suas dores e era íntimo da arte de pensar. Esse homem foi Jesus Cristo.
A história de Cristo teve particularidades em toda a sua trajetória: do nascimento à morte. Ele abalou os alicerces da história humana através de sua própria história. Seu viver e seus pensamentos atravessaram gerações, varreram os séculos, embora ele nunca tenha procurado status social ou político.
Ele cresceu sem se submeter à cultura clássica do seu tempo. Quando abriu a boca, produziu pensamentos de inconfundível complexidade. Tinha pouco mais de trinta anos, mas perturbou profundamente a inteligência dos homens mais cultos de sua época. Os escribas e fariseus – que possuíam uma cultura milenar rica, eram intérpretes e mestres da lei – ficaram chocados com seus pensamentos.
Sua vida sempre foi árida, sem nenhum privilégio econômico ou social. Conheceu intimamente as dores da existência. Contudo, em vez de se preocupar com as suas próprias dores e querer que o mundo gravitasse em torno das suas necessidades, ele se preocupava com as dores e necessidades alheias.
O sistema político e religioso não foi tolerante com ele, mas ele foi tolerante e dócil com todos, mesmo com seus mais ardentes opositores. Cristo vivenciou sofrimentos e perseguições desde a sua infância. Foi incompreendido, rejeitado, zombaram dele, cuspiram em seu rosto. Foi ferido física e psicologicamente. Porém, apesar de tantas misérias e sofrimentos, não desenvolveu uma emoção agressiva e ansiosa; pelo contrário, exalava tranquilidade diante das mais tensas situações e ainda tinha fôlego para discursar sobre o amor no seu mais poético sentido.
Muitos autores, ao longo dos séculos, abordaram Cristo em diferentes aspectos espirituais: sua divindade, seu propósito transcendental, seus atos sobrenaturais, seu reino celestial, sua ressurreição, a escatologia (doutrina das últimas coisas), etc. Quem quiser estudar esses aspectos terá de procurar os textos desses autores, pois a análise da inteligência de Cristo o investiga de outra perspectiva, de outro ângulo.
Este livro faz uma investigação talvez jamais realizada pela ciência da interpretação ou pela psicologia. Investiga a singular personalidade de Jesus Cristo. Analisa o funcionamento da sua surpreendente inteligência. Estuda sua arte de pensar, os meandros da construção de seus pensamentos nos seus focos de tensão.
A inteligência é composta de muitos elementos. Em síntese, ela se constitui da construção de pensamentos, da transformação da energia emocional, do processo de formação da consciência existencial (quem sou, como estou, onde estou), da história inconsciente arquivada na memória, da carga genética. Aqui definirei a personalidade como a manifestação da inteligência diante dos estímulos do mundo psíquico, bem como dos ambientes e das circunstâncias em que uma pessoa vive. Todo ser humano possui uma inteligência, mas nem todos desenvolvem suas funções mais importantes.
Durante as quase duas décadas em que tenho pesquisado o funcionamento da mente, a construção da inteligência e o processo de interpretação, posso afirmar com segurança que Jesus possuía uma personalidade bastante complexa, muito difícil de ser investigada, interpretada e compreendida. Este é um dos fatores que inibiram a ciência de procurar investigar e compreender, ainda que minimamente, a sua inteligência.
Analisar a inteligência de Jesus Cristo é um dos maiores desafios da ciência. Após ter desenvolvido os alicerces básicos de uma nova teoria sobre o funcionamento da mente, comecei a me envolver nesse enorme e estimulante projeto que é investigar a personalidade de Jesus. Foram anos de estudo, em que procurei, dentro das minhas limitações, fugir das respostas aleatórias e das explicações científicas superficiais.
Interpretar a história é uma tarefa intelectual das mais complexas. Significa reconstruí-la e não resgatá-la de maneira pura. Reconstruir os fatos, ambientes e circunstâncias do passado é um grande desafio. Se o leitor tentar resgatar as suas experiências mais marcantes, verificará que isso frequentemente reduz a dimensão das dores e dos prazeres vividos no passado. Estudaremos este assunto. Todo resgate do passado está sujeito a limitações e imperfeições. Este livro, que é um exercício de interpretação psicológica da história, não foge à regra.
Se interpretar a história é uma tarefa intelectual complexa e sinuosa, imagine como deve ser difícil investigar a inteligência de Cristo, os níveis de sua coerência intelectual, sua capacidade de gerenciar a construção de pensamentos, de transcender as ditaduras da inteligência, de superar as dores físicas e emocionais e de abrir as janelas da mente das pessoas que o cercavam.
Jesus possuía uma personalidade difícil de ser estudada. Suas reações intelectuais e emocionais eram tão surpreendentes e incomuns que ultrapassam os limites da previsibilidade psicológica. Apesar das dificuldades, é possível viajarmos por algumas avenidas fundamentais do seu pensamento e compreendermos algumas áreas importantes da sua inteligência.
Um enigma para a ciência em diversas áreas
Quem foi Jesus Cristo? Este livro, que pretende realizar uma análise psicológica da sua inteligência, não pode responder plenamente a essa pergunta, pois ela entra na esfera da fé, uma esfera que ultrapassa os limites da investigação científica, que transcende a ciência da interpretação. A ciência se cala quando a fé se inicia. A fé transcende a lógica, é uma convicção em que há ausência de dúvida. A ciência sobrevive da dúvida. Quanto maior for a dúvida, maior poderá ser a dimensão da resposta. Sem a arte da dúvida, a ciência não tem como sobreviver e expandir a sua produção de conhecimento.
Jesus discorria sobre a fé. Falava da necessidade de crer sem duvidar, de uma crença plena, completa, sem insegurança. Falava da fé como um misterioso processo de interiorização, como uma trajetória de vida clandestina. Discorria sobre a fé como um viver que transcende o mundo material, extrapola o sistema sensorial e cria raízes no âmago do espírito humano.
A ciência não tem como investigar o que é essa fé, pois, como suas raízes se encontram no cerne da experiência pessoal, ela não se torna um objeto de estudo investigável. Todavia, apesar de Jesus Cristo falar da fé como um processo de existência transcendental, ele não anulava a arte de pensar; pelo contrário, era um mestre excepcional nessa arte. Ele não discorria sobre uma fé sem inteligência.
Para ele, primeiro deveria se exercer a capacidade de pensar e refletir antes de crer, depois vinha o crer sem duvidar. Se estudarmos os quatro evangelhos e investigarmos a maneira como Jesus reagia e expressava seus pensamentos, constataremos que pensar com liberdade e consciência era uma obra-prima para ele.
Um dos maiores problemas enfrentados por Cristo era o cárcere intelectual em que as pessoas viviam, ou seja, a rigidez intelectual com que elas pensavam e compreendiam a si mesmas e o mundo que as envolvia. Por isso, apesar de falar da fé como ausência da dúvida, ele também era um mestre sofisticado na arte da dúvida. Ele a usava para abrir as janelas da inteligência das pessoas que o circundavam (Lucas 5:23; 6:9; 7:42).
Como Jesus usava a arte da dúvida? Se observarmos os textos dos quatro evangelhos, veremos que ele era um excelente indagador, um ousado questionador. Usava a arte da pergunta para conduzir as pessoas a se interiorizarem e a se questionarem. Também era um exímio contador de parábolas que perturbava os pensamentos de todos os seus ouvintes.
Quem é Jesus Cristo? Ele é o filho de Deus? Ele tem natureza divina? Ele é o autor da existência? Como ele se antecipava ao tempo e previa fatos ainda não acontecidos, tais como a traição de Judas e a negação de Pedro? Como realizava os atos sobrenaturais que deixavam as pessoas extasiadas? Como multiplicou alguns pães e peixes e saciou a fome de milhares de pessoas? Ele multiplicou a matéria, as moléculas, ou usou qualquer outro fenômeno? A ciência não pode dar essas respostas sobre Cristo nem outras tantas, pois essas perguntas entram na esfera da fé. Como disse, quando começa a fé, que é íntima e pessoal de cada ser humano e que, portanto, deve ser respeitada, a ciência se cala. Jesus continuará sendo, em muitas áreas, um grande enigma para a ciência.
Não é possível comentar a sua inteligência em alguns capítulos. Sua arte de pensar é sofisticada demais para ser tratada em apenas um livro. Outras obras serão necessárias para abordá-la.
Ao investigarmos a sua inteligência, talvez possamos responder a algumas destas importantes perguntas: Cristo sempre expressava com elegância e coerência a sua inteligência nas várias situações tensas e angustiantes que vivia? Teria ele dividido a história da humanidade se não tivesse realizado nenhum ato sobrenatural? Por que suas palavras permanecem vivas até hoje, mexendo com centenas de milhões de pessoas de todas as línguas e de todos os níveis sociais, econômicos e culturais? Por que homens que nunca o viram ou nunca o tocaram – entre eles pensadores, filósofos e cientistas – disseram espantosamente, ao longo da história, que não apenas creram nele, mas também o amaram?
Realizaremos neste livro uma viagem intelectual interessante ao investigarmos a vida de Cristo. Ao contrário do que se possa pensar, ele gostava de ser estudado. Ele apreciava ser analisado e indagado com inteligência. Criticava as pessoas que o investigavam superficialmente. Em uma oportunidade, chegou até mesmo a convocar escribas e fariseus a estudarem mais profundamente a identidade e a origem de “Jesus Cristo” (Marcos 12:35-37).
As características ímpares da personalidade
daquele que dividiu a história da humanidade
Nossa análise da inteligência de Cristo não obedecerá à ordem cronológica de sua vida, mas estudará as características da sua inteligência em situações específicas e em épocas distintas da sua história.
Este livro não defende uma religião. Sua meta é fazer uma investigação psicológica da personalidade de Cristo. Porém, os sofisticados princípios intelectuais da inteligência dele poderão contribuir para abrir as janelas da inteligência das pessoas de qualquer religião, mesmo as não cristãs. Tais princípios são tão complexos que diante deles até os ateus mais céticos poderão enriquecer sua capacidade de pensar.
É difícil encontrar alguém capaz de nos surpreender com as características da sua personalidade, capaz de nos convidar a nos interiorizar e repensar nossa história. Alguém que diante dos seus focos de tensão, contrariedades e dores emocionais tenha atitudes sofisticadas e consiga produzir pensamentos e emoções que fujam do padrão trivial. Alguém tão interessante que possua o dom de perturbar nossos conceitos e paradigmas existenciais.
Com o decorrer dos anos, à medida que atuei como psiquiatra, psicoterapeuta e pesquisador da inteligência, e investiguei diversos tipos de personalidades, compreendi que o ser humano, apesar da complexidade da sua mente, é frequentemente muito previsível. O Mestre dos Mestres fugia a essa regra. Possuía uma inteligência instigante capaz de provocar a inteligência de todos os que passavam por ele.
Ele tinha plena consciência do que fazia. Suas metas e prioridades eram bem estabelecidas (Lucas 18:31; João 14:31). Era seguro e determinado, ao mesmo tempo flexível, extremamente atencioso e educado. Tinha grande paciência para educar, mas não era um mestre passivo, e sim provocador. Despertava a sede de conhecimento nos seus íntimos (João 1:37-51). Informava pouco, porém educava muito. Era econômico no falar, dizendo muito com poucas palavras. Era ousadíssimo em expressar seus pensamentos, embora vivesse numa época em que imperava o autoritarismo.
Sua coragem para expressar os pensamentos trazia-lhe frequentes perseguições e sofrimentos. Todavia, quando queria falar, ainda que suas palavras lhe trouxessem grandes transtornos, não se intimidava. Mesclava a singeleza com a eloquência, a humildade com a coragem intelectual, a amabilidade com a perspicácia.
Cristo nasceu num país cuja identidade e sobrevivência estavam profundamente ameaçadas pelo autoritarismo e pela vaidade do Império Romano. O ambiente sociopolítico era angustiante. Sobreviver era uma tarefa difícil. A fome e a miséria constituíam o cotidiano das pessoas. O direito personalíssimo, ligado à liberdade de expressar o pensamento, era profundamente restringido pela cúpula judaica e amaldiçoado pelo Império Romano. A comunicação e o acesso às informações eram limitados.
Os judeus esperavam um grande líder, o Cristo (“ungido”), alguém capaz de reinar sobre eles, de resgatar-lhes a identidade e de libertá-los do jugo do Império Romano. Os membros da cúpula judaica viviam sob tensão política, com sua sobrevivência sob ameaça e seus direitos aviltados. Porém, por causa de sua rigidez intelectual, não investigaram e, portanto, não reconheceram o Cristo humilde, tolerante, dócil e inteligente que não desejava status social nem poder político.
Esperavam alguém que os libertasse do jugo romano, mas veio alguém que queria libertar o ser humano das suas misérias psíquicas. Esperavam alguém que fizesse uma revolução exterior, mas veio alguém que propôs uma revolução interior. Esperavam um poderoso político, mas veio alguém que nasceu numa manjedoura, cresceu numa cidade desprezível, Nazaré, e se tornou um carpinteiro, vivendo no anonimato até os trinta anos.
Cristo não frequentou os bancos escolares nem se formou aos pés dos intelectuais da época, escribas e fariseus, mas frequentou a escola da existência, a escola da vida. Nessa escola, conheceu profundamente o pensamento, as limitações e as crises da existência humana. No anonimato, padeceu de angústias, dores físicas, opressões sociais, dificuldades de sobrevivência, frio, fome, rejeição social.
Na escola da existência, a maioria das pessoas não investe em sabedoria e a velhice não é sinal de maturidade. Nela, os títulos acadêmicos, o status social e a condição financeira não refletem a riqueza interior nem significam sucesso na liberdade de pensar, na arte da contemplação do belo, no prazer de viver. A escola da existência é abrangente, pois envolve toda a nossa trajetória de vida, incluindo até mesmo a instituição educacional.
A escola da existência é tão complexa que nela se pode ler uma infinidade de livros de autoajuda e continuar, ainda assim, a ser inseguro e ter dificuldade de lidar com as contrariedades. Nela, o maior sucesso não está fora das pessoas, mas em conquistar terreno dentro de si mesmas; a maior jornada não é exterior, e sim interna, percorrendo as trajetórias do próprio ser. Nessa escola, os melhores alunos não são aqueles que se gabam dos seus sucessos, mas os que reconhecem seus conflitos e limitações.
Todos nós passamos por determinadas angústias e ansiedades, pois algumas das mazelas da vida são imprevisíveis e inevitáveis. Na escola da existência aprende-se que se adquire experiência não só com os acertos e as conquistas, mas, muitas vezes, com as derrotas, as perdas e o caos emocional e social. Foi nessa escola tão sinuosa que Jesus se tornou o Mestre dos Mestres.
Ele foi mestre numa escola em que muitos intelectuais, cientistas, psiquiatras e psicólogos são pequenos aprendizes. Muitos psiquiatras e psicoterapeutas possuem elegância intelectual enquanto estão dentro dos seus consultórios. São lúcidos e coerentes quando estão envolvidos na relação terapêutica com seus pacientes. Porém, a vida real pulsa fora dos consultórios de psiquiatria e psicoterapia. Assim, quando estão diante dos seus próprios estímulos estressantes – ou seja, das suas frustrações, perdas e dores emocionais – apresentam dificuldade para manter a lucidez e a coerência.
Do mesmo modo, muitas pessoas que frequentam uma reunião empresarial, científica ou religiosa apresentam um comportamento sereno e lúcido enquanto estão reunidas. Todavia, quando se encontram diante dos territórios turbulentos da vida, não sabem se reciclar, ser tolerantes, trabalhar suas contrariedades com dignidade.
A melhor maneira de conhecer a inteligência de uma pessoa é observá-la, não nos ambientes isentos de estímulos estressantes, mas nos territórios em que eles estão presentes.
Quem usa continuamente as angústias existenciais, as ansiedades, os estresses sociais, os desafios profissionais para enriquecer a arte de pensar e amadurecer a personalidade? Viver com dignidade e maturidade a vida que pulsa no palco de nossas existências é uma arte que todos temos dificuldade de aprender.
Pela elegância com que manifestava seus pensamentos, Cristo provavelmente usava cada angústia, cada perda, cada contrariedade como uma oportunidade para enriquecer sua compreensão da natureza humana. Era tão sofisticado na construção dos pensamentos que fazia até mesmo das suas misérias poesia. Dizia poeticamente que “as raposas têm seus covis, as aves do céu têm seus ninhos, mas o filho do homem (ele) não tinha onde reclinar a cabeça” (Mateus 8:20). Como pode alguém falar elegantemente da própria miséria? Jesus era um poeta da existência. Suas biografias revelam que ele reconhecia e reciclava suas dores continuamente. Assim, em vez de ser destruído por elas, ele as usava como alicerce da sua inteligência.
O carpinteiro de Nazaré viveu no anonimato a maior parte de sua existência, porém, quando se manifestou, revolucionou o pensamento e o viver humanos. Seu projeto era audacioso. Ele afirmava que primeiro o interior – ou seja, o mundo dos pensamentos e das emoções – devia ser transformado; caso contrário, a mudança exterior não teria estabilidade, não passaria de mera maquiagem social (Marcos 7:17-23; João 8:36). Para Cristo, a mudança exterior era uma consequência da transformação interior.
Apesar de a inteligência de Cristo ser excepcional, ele reunia todas as condições para confundir o pensamento humano. Nasceu numa pequena cidade. Seu parto foi entre os animais, sem qualquer espetáculo social, estética ou glamour.
Com menos de dois anos, mal tinha iniciado sua vida, já estava condenado à morte por Herodes. Seus pais, apesar da riqueza interior, não tinham qualquer expressão social. A cidade em que cresceu era desprezada. Sua profissão era humilde. Seu corpo foi castigado pelas dificuldades de sobrevivência, e por isso alguns o consideravam envelhecido para a sua idade (João 8:57).
Não buscava ser o centro das atenções. Quando a fama batia- -lhe à porta, procurava se interiorizar e fugir do assédio social. Não se autopromovia nem se autoelogiava. Não falava sobre sua identidade claramente, nem mesmo para seus discípulos mais íntimos, mas deixava que eles usassem a capacidade de pensar e a descobrissem por si mesmos (Mateus 16:13-17). Falava frequentemente na terceira pessoa, referindo-se ao seu Pai. Só falava na primeira pessoa em ocasiões especiais, nas quais sua ousadia era impressionante, deixando todos perplexos com suas palavras (João 6:13-52; 8:12-13; 8:58-59).
Jesus gostava de conviver com os desprovidos de valor social. Era o exemplo vivo de uma pessoa avessa a todo tipo de discriminação. Ninguém, por mais imoral e por mais defeitos que tivesse, era indigno de se relacionar com ele. Cristo se doava sem esperar nada em troca.
Diferentemente dos escribas e fariseus, dava mais importância à história das pessoas do que ao “pecado” como ato moral. Entrava no mundo delas, percorria a trajetória de suas vidas. Gostava de ouvi-las. A arte de ouvir era uma joia intelectual para ele.
Cristo não tinha formação psicoterapêutica, mas era um mestre da interpretação, pois conseguia captar os sentimentos íntimos das pessoas. Percebia seus conflitos mais ocultos e atuava neles com inteligência e eficiência. Era comum ele se antecipar e dar respostas a perguntas que ainda não tinham sido formuladas ou que as pessoas não tinham coragem de expressar (Lucas 7:39-40; 11:17).
Reagia com educação até quando o ofendiam profundamente. Era amável mesmo quando corrigia e repreendia alguém (João 8:48-51; 53-54). Não expunha em público os erros das pessoas, mas ajudava-as com discrição, considerando-as acima dos seus erros, conduzindo-as a se repensarem.
Embora fosse eloquente, expunha e não impunha suas ideias. Não persuadia nem procurava convencer as pessoas a crerem nas suas palavras. Não as pressionava para que o seguissem, apenas as convidava (João 6:35). A responsabilidade de crer nele era exclusivamente delas. Suas parábolas não produziam respostas prontas, mas estimulavam a arte da dúvida e a produção de pensamentos.
Jesus não respondia às perguntas quando pressionado, sendo fiel à sua própria consciência. Embora fosse muito amável, não bajulava ninguém. Não empregava meios escusos para conseguir determinados fins. Por isso, era mais fácil as pessoas ficarem perplexas diante dos seus pensamentos e reações do que compreendê-los. Ele foi, de fato, um grande teste para a cúpula de Israel. Cristo foi e continua sendo um grande enigma para a ciência e para os intelectuais de todas as gerações. Hoje, provavelmente, não poucas pessoas que afirmam segui-lo ficariam perturbadas por seus pensamentos se vivessem naquela época.
Cristo confundia a mente das pessoas que passavam por ele e, ao mesmo tempo, causava nelas – até nos seus opositores – profunda admiração. Maria, sua mãe, impressionava-se com o comportamento do filho e com seu discurso desde a infância. Quando ele falava, ela guardava em silêncio suas palavras (Lucas 2:45-51). Tinha apenas 12 anos de idade, e os doutores da lei, admirados, sentavam ao seu redor para ouvir sua sabedoria (Lucas 2:39-44). Seus discípulos ficavam continuamente atônitos com sua inteligência, enquanto seus opositores emudeciam diante do seu conhecimento e faziam “plantão” para ouvir suas palavras (Mateus 22:22). Até Pilatos parecia um menino perturbado diante dele (Mateus 27:13-14). Com a arrogância e o autoritarismo que lhe eram conferidos pelo poderoso Império Romano, Pilatos não podia suportar o silêncio de Cristo em seu interrogatório. A singeleza e a serenidade dele, mesmo diante do risco de morrer, chocavam a mente de Pilatos. A esposa do imperador, que não participava do julgamento de Cristo mas sabia o que estava acontecendo, ficou inquieta, sonhou com ele e teve seu sono perturbado (Mateus 27:19).
As pessoas discutiam continuamente a respeito de quem era aquele misterioso homem que parecia ter uma origem tão simples. Graças à sua intrigante e instigante inteligência, Cristo provavelmente foi o maior causador de insônia em sua época.