Introdução
O governador e o corrupto
Sérgio Cabral Filho foi líder estudantil, deputado estadual, presidente da Assembleia Legislativa, senador, governador e chefe da organização criminosa que saqueou os cofres do Rio de Janeiro, o estado onde construiu sua carreira política. Sempre ao lado da mulher, Adriana Ancelmo, a quem carinhosamente chamava de Riqueza, mais do que dinheiro fácil, ele queria uma vida de rei.
A Polícia Federal o prendeu em 17 de novembro de 2016. Maior investigação da história do Brasil, a Lava Jato expôs um gigantesco esquema de corrupção envolvendo políticos de vários partidos e grandes empresas públicas e privadas do país. Também revelou uma espécie de corrupto nunca descoberta antes. Não há precedente de tamanha roubalheira, ganância e soberba.
O governo paralelo montado pela quadrilha de Sérgio Cabral arrecadava propina como se fosse imposto. Em troca do suborno, entregava de bandeja as obras públicas para as maiores construtoras do país. Cabral recebia mesada de 350 mil a 500 mil reais das empreiteiras, exigia também 5% sobre o valor dos contratos e até joias aceitava em pagamento, para felicidade da primeira-dama.
Boa parte do dinheiro para as obras vinha do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, aliado político e companheiro de afagos ao ego um do outro. Em abril de 2018, Lula também foi preso na Lava Jato, condenado no caso do tríplex do Guarujá, no litoral paulista, por ter recebido o apartamento de presente da empreiteira OAS, favorecida em contratos com a Petrobras.
Sem esconder as extravagâncias, o governador se dava às farras em Paris na mira das câmeras de celular, que registraram seus assessores numa dancinha de guardanapo na cabeça. Usava os helicópteros do estado para levar a mulher, os filhos, os amigos e até o cachorro à casa de praia nos fins de semana e feriados. Comprava joias em dinheiro vivo, investia em diamantes guardados num cofre na Suíça e engordava uma rede de contas bancárias secretas em vários países. Vivia bem-vestido e no luxo. Segundo a Procuradoria da República, Sérgio Cabral chegava a gastar 4 milhões de reais por mês.
Nascido em 27 de janeiro de 1963, numa família de baixa classe média no subúrbio do Rio de Janeiro, Serginho teve oportunidade de se tornar um grande homem. Na infância e na adolescência em Copacabana, na Zona Sul carioca, ele conviveu em casa com artistas e intelectuais que visitavam Sérgio Cabral, pai, o jornalista, escritor e letrista de samba que resistiu à ditadura militar com o
semanário O Pasquim.
Quando entrou na política, na década de 1980, Serginho estendeu a bandeira da moralidade na vida pública. Esbanjava charme, vendia a promessa de renovação contra velhacos e defendia lisura até na arbitragem de futebol. Os seus projetos de deputado ajudavam jovens mochileiros a se hospedarem em albergues e promoviam bailes para velhinhos.
Ele sofreu duas derrotas nas eleições para prefeito do Rio, mas ficaria oito anos no comando do Poder Legislativo estadual. O pai achava que o filho algum dia chegaria a presidente da República. Esperava estar vivo para vê-lo subir a rampa do Palácio do Planalto em Brasília. Só não imaginava o filho na cadeia.
A corrupção começou ainda nos tempos de deputado. No final da década de 1990, Sérgio Cabral abriu, num banco de Nova York, a primeira conta secreta, batizada de “Eficiência”, para guardar 2 milhões de dólares em propina, paga por empresas de ônibus. Quase duas décadas depois, o saldo chegava a 100 milhões de dólares em diversos bancos fora do Brasil.
O esquema de corrupção aumentou logo que ele ocupou a cadeira de governador. Antes de sentar-se no trono, recolhia 200 mil reais por mês. A partir de 2007, passou a coletar 1 milhão de reais para remessa ao exterior.
Até parecia um grande administrador. Na área da saúde, salpicou pelos municípios as Unidades de Pronto Atendimento, chamadas de UPA. Na segurança, implantou nos morros cariocas o projeto das UPPs,
Unidades de Polícia Pacificadora, que, pela primeira vez, pôs os bandidos em desvantagem contra a PM. Aumentou salários de servidores e inaugurou várias obras de infraestrutura, muitas delas em favelas.
Mas, na verdade, Sérgio Cabral levava vida dupla. Investia no estado com uma mão e embolsava dinheiro público com a outra. Tornou-se assim a nossa versão política de o médico e o monstro.
Capítulo 1
“Não vou largar, o senhor é preso nosso”
Cada luminária espatifada deixava mais escura a noite no Leblon, enquanto a horda de mascarados destruía, a pedradas e chutes, tudo o que podia no bairro mais rico da Zona Sul carioca. “Aí, galera, roupa pra todo mundo!”, gritou o homem que lançava camisetas para fora da loja saqueada. “Vamos queimar tudo!”, exclamou outro, arrastando pelo asfalto o manequim que alimentaria a fogueira de entulhos no meio da rua. Os policiais respondiam com balas de borracha, jatos de água e bombas de gás. A revolta que começara contra o aumento das passagens de ônibus havia chegado ao alvo principal naquela noite de 17 de julho de 2013. O governador do Rio de Janeiro, Sérgio
Cabral, morava no Leblon e, por isso, o protesto se concentrava ali, perto de seu luxuoso apartamento, onde um grupo de jovens acampados hasteou a bandeira “Fora Cabral!”. Os vizinhos desejavam que, se ficasse no governo, Sérgio Cabral desse o fora ao menos do bairro, mas ele vivia em outro mundo.
Horas antes do iminente quebra-quebra, Cabral convocou a funcionária da joalheria HStern. Como sempre fazia, Luiza Trotta colocou na frente de seu cliente especial cinco joias, com o preço anotado embaixo de cada uma. O governador nunca se demorava na escolha, então logo apontou para o anel de esmeralda de 532 mil reais. Qual a forma de pagamento? O homem da mala de dinheiro bancaria as seis parcelas de 88 mil reais.1
No dia seguinte, enquanto moradores e comerciantes do Leblon lastimavam a destruição, Sérgio Cabral deu o anel de esmeralda para Riqueza. Era assim que ele chamava sua mulher, que comemorava 43 anos naquela data. Adriana Ancelmo abriu um sorriso e beijou o marido, mas escondia sua insatisfação. Luiza Trotta recorda-se que, mais tarde e sem Cabral saber, Riqueza telefonou para a joalheria, perguntou quanto custara o anel e disse, decidida: “Quero devolver.” Será que a primeira-dama rejeitaria o presente por alguma suspeita contra o marido, entre as tantas levantadas nos protestos de rua? “Você não gostaria de trocar?”, insistiu a diretora comercial, interessada na venda. Adriana explicou-se melhor. Ela mandaria o anel de volta à HStern, mas não seria o caso de devolver o que
Sérgio Cabral pagaria. O dinheiro do marido ajudaria a quitar outro anel, esse sim de seu gosto, que ela mesma tinha comprado um mês antes, em 14 de junho, por 1,11 milhão de reais, parcelado em oito vezes, segundo os registros da joalheria.2
Riqueza comprara o anel de ouro amarelo 18 quilates, com brilhante solitário, para combinar com outra joia, ainda mais valiosa, adquirida pouco tempo antes, em 5 de abril de 2013: um brinco de ouro com diamante amarelo na cor J, quase incolor e de alto grau de pureza, que havia custado a fortuna de 1,824 milhão de reais e fora retirado na loja. Adriana dera em pagamento outro brinco que possuía desde 2009, peça de 1,224 milhão de reais. Os 600 mil restantes foram quitados em três vezes por Carlos Miranda, o homem da mala de Sérgio Cabral. Luiza Trotta lembra que Miranda telefonou para agendar as três entregas na loja de Ipanema, bairro vizinho ao Leblon. A presença do sujeito barbado, monossilábico e de atitude objetiva impressionou os funcionários, que nunca tinham visto tanto dinheiro na vida.
Em pouco mais de três meses, o casal gastou 1,71 milhão de reais na joalheira. Podia ser bem menos, se a primeira-dama quisesse economizar. A funcionária propôs um upgrade no brinco comprado em 2009. A joia ganharia outra pedra maior com pagamento só da diferença de quilate, mas Riqueza não aceitou porque agora desejava diamantes amarelos, a sua nova paixão.3 Adriana e Cabral pareciam alienados, seres de outra galáxia, diante daquele povo na rua do prédio deles, gritando contra o aumento de 20 centavos na passagem do ônibus.
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Quase todos os dias da semana, Sérgio Cabral saía do apartamento no Leblon em carro blindado, escoltado por seguranças, e percorria pouco mais de três quilômetros até o heliporto da Lagoa. Embarcava no helicóptero do governo para o Palácio Guanabara, num voo que durava pouco mais de cinco minutos. Policiais graduados e oficiais bombeiros, que deveriam estar em missões do Estado, mas tinham virado pilotos particulares do governador, sentiam-se incomodados com a rotina de nababo. Aquilo era ostentação, e não medida de segurança. Da janela do helicóptero, avistava-se o morro Santa Marta, em Botafogo, a primeira favela carioca a receber o projeto de pacificação que prometia reduzir a violência no Rio. Lá do alto parecia tudo bem, mas embaixo a polícia suportava sozinha as carências da comunidade, tentando desarmar a bomba-relógio da ausência de investimento público.
Adriana Ancelmo possuía em seu nome a caminhonete Freelander 2, preta, com placas de São Paulo, mas também preferia o conforto dos helicópteros do governo. Tinha autorização para convocar os pilotos, mesmo em viagens particulares e sem a presença do governador. Quase sempre optava pelo Eurocopter Deutschland EC 135, que pode transportar até seis passageiros. Os voos mais frequentes eram para Búzios, para a casa de praia em Mangaratiba e para o aeroporto Santos Dumont e o do Galeão, onde provavelmente tomava algum avião de carreira. Sérgio Cabral não permitia que Riqueza sofresse no trânsito. Durante o seu governo, entre 2007 e 2014, segundo levantamento da Promotoria de Justiça, a primeira-dama viajou 220 vezes sozinha nas aeronaves, num total de 190 horas de voo.
Às sextas-feiras, ainda de dia, Adriana relegava a segundo plano seu escritório de advocacia, que já pouco frequentava. No segundo mandato do marido, ela se afastou bastante, parecia sempre deprimida e, às vezes, quando um funcionário levava algum papel para ela assinar no apartamento, a encontrava ainda de pijama. A primeira-dama costumava embarcar no heliporto da Lagoa com os dois filhos pequenos, as babás e o cachorro Juquinha, do menino mais novo, rumo a Mangaratiba, onde passavam o fim de semana com direito a passeio de barco na baía da Ilha Grande. Ao final da tarde, Sérgio Cabral voava ao encontro da mulher e dos filhos, em geral solitário no Agusta AW 109 Grand New, com capacidade para sete passageiros. Apreciava quando saía mais cedo, a tempo de ver o pôr do sol. O Estado comprou o Agusta por 15 milhões de reais para atender o governador, antes ele usava o Dauphin SA 365 N1, que comporta até oito pessoas além do piloto.
Durante as férias escolares de 2013 (ano dos protestos de rua), as crianças e Riqueza se refugiaram a maior parte do tempo no litoral da Costa Verde. Para não ficar longe da família, quase todos os dias, o governador pegava o voo no final do expediente, dormia em Mangaratiba e voltava na manhã seguinte à cidade do Rio. Os pilotos tinham que fazer plantão noturno por causa do amor de Sérgio Cabral e da primeira-dama.
Nos fins de semana prolongados por conta de feriados, ocorria o que os comandantes chamavam de “revoada”. Três helicópteros do governo decolavam ao mesmo tempo para Mangaratiba. O governador ia empertigado no Agusta, os seus convidados e as babás se distribuíam no EC 135 e no Dauphin. A revoada aconteceria 109 vezes durante o mandato do governador, segundo a Promotoria de Justiça, que descobriu casos de soberba ainda maior. Numa noite
de carnaval, a aeronave buscou a turminha que acabara de assistir ao desfile das escolas de samba, na Marquês de Sapucaí, e queria descansar no litoral. Os pilotos comentavam que, certa vez, Riqueza mandou o helicóptero ir buscar no Rio o vestido que ela desejava usar na mansão de praia.4
A atual casa de veraneio – que o casal frequentava desde 2011, mas que só foi registrada em cartório em 2016 – tem 462 metros quadrados de área construída e foi avaliada em 8 milhões de reais. Localizada num condomínio de luxo num paraíso entre o mar e as montanhas cobertas de Mata Atlântica, floresta tão bonita quanto rara, possui sala, cozinha, dois lavabos, despensa e dois quartos de serviço com banheiros no primeiro andar e cinco suítes no segundo, sendo três delas de frente para a praia. Na área externa, há duas piscinas, sauna, área de churrasqueira, sofás num espaço coberto do jardim e campo de futebol, onde o helicóptero descia. Essa é a segunda propriedade de Cabral no condomínio Portobello, que oferece aos moradores diversas opções de lazer, como passeios a cavalo, safári numa área de animais exóticos e trilhas na mata. Em 1998, o então deputado estadual se instalou inicialmente às margens de um canal da baía da Ilha Grande, numa casa pré-fabricada importada por ele dos Estados Unidos.
Pelas contas do Ministério Público do Estado do Rio, o governador e Riqueza foram responsáveis por 2.281 voos particulares, sem o menor interesse público. Entre combustível, gastos com manutenção e diárias dos pilotos, deram prejuízo de quase 20 milhões ao erário. Chocante e, ainda assim, mixaria perto do esquema de corrupção que seria descoberto.
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A equipe de fiscalização chegou de surpresa à cadeia de Benfica, no final da tarde de sexta-feira, 24 de novembro de 2017. Preso há um ano e sete dias, Sérgio Cabral levou um susto. Jogava conversa fora à porta de sua cela, a última do corredor, quando viu os quatro promotores de Justiça, a perita em câmeras de segurança e os 17 agentes marcharem em sua direção “com a volúpia”, segundo ele, “de quem invade um local”.5 O ex-governador e os demais internos tiveram que ficar de pé, lado a lado, encostados na parede. É a “posição de confere”, na linguagem do cárcere.
Sérgio Cabral, inúmeros políticos, donos de empreiteiras, dirigentes de estatais e até o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva caíram na rede da Lava Jato, a maior operação contra a corrupção na história do Brasil, sustentada principalmente por delações dos envolvidos e pela tenacidade de juízes e procuradores da República.
Ainda sob a influência do ex-chefe, o governo do estado reservou uma ala de Benfica para os presos fluminenses da Lava Jato. Quase hotel de luxo, se comparada às cadeias precárias do país, a galeria C possuía nove celas, cada qual com três beliches, chuveiro, pia, tanque, filtro purificador de água e banheiro com vaso sanitário (a maioria dos cárceres brasileiros tem apenas um buraco no chão, chamado de boi, onde muitos encostam a cabeça durante a noite, na falta de espaço dos cubículos superlotados). A inspeção começou pela cela nove, a do ex-governador.
Ele guardava um cooler improvisado, feito com caixa de papelão e balde cheio de gelo para conservar alimentos. A tampa tinha o seu nome escrito e dentro havia uma variedade de queijos, todos apreendidos pelos promotores. Além de proibidos no sistema penitenciário, certamente não passaram pela revista dos guardas porque as embalagens permaneciam lacradas. Os presos aqueciam a comida com um ferro incandescente, espécie de resistência ligada à tomada, o que não é permitido pois há risco de curto-circuito. O ex-governador ainda mantinha vestígios da antiga sofisticação. Os fiscais encontraram pacotes de TWG Tea 1837, chá refinado e importado de Cingapura. Para o seu preparo, havia uma chaleira elétrica, também confiscada.
Cada interno do presídio pode ter no máximo 100 reais em dinheiro por semana. O empresário de transporte Jacob Barata Filho, mais conhecido por “Rei dos Ônibus”, descumpria essa regra da cadeia. Ele acabou atrás das grades acusado de pagar, com outros empresários, propina de 145 milhões de reais a Sérgio Cabral em troca de vantagens para seus negócios. Enquanto o governador voava de helicóptero, os ônibus superlotados maltratavam os passageiros, sem fiscalização do poder público “arregado”. Agora na cadeia, Barata Filho era o de bolso mais cheio entre os colegas. Ele estava com 500 reais. Perdeu! Os promotores apreenderam as notas.
Naquele momento, isolado na galeria B, outro ex-governador do Rio de Janeiro se lamuriava no cárcere. A cela de Anthony Garotinho não tinha cooler improvisado e nenhuma regalia, até porque ele havia sido preso apenas dois dias antes, acusado de corrupção, caixa dois de campanha eleitoral e formação de organização criminosa. Os promotores notaram um vazamento no banheiro precário que encharcava o chão. Recomendaram a transferência do ex-governador para outra cela em melhores condições, mas Garotinho já estava de saída para o complexo de penitenciárias em Bangu, a 30 quilômetros dali, por causa de um entrevero na madrugada daquele dia.
Inimigo político de Sérgio Cabral, a quem denuncia em seu blog e em seu programa de rádio, Garotinho bateu palmas e gritou para chamar os guardas de plantão, por volta das duas da manhã. Relatou a eles que, momentos antes, um homem aproximou-se da cela e disse: “Você gosta muito de falar, não é?” Em seguida, o sujeito acertou um golpe de bastão no joelho do ex-governador e ainda puxou uma arma: “Só não vou te matar para não sujar para o pessoal do lado”, no caso, a turma da galeria C da Lava Jato.6 Os carcereiros acharam a história meio fantasiosa, mas sobrou para o presidiário e médico Sérgio Côrtes. Acusado de receber 16,2 milhões de reais em propina por fraude em licitações da Saúde do Rio, o ex-secretário estadual foi acordado para examinar Garotinho, justamente o homem que havia publicado na internet fotos dele com um guardanapo na careca, junto com outros assessores de Sérgio Cabral, numa inesquecível farra em Paris, em 2009. Garotinho os chamou de “a gangue dos guardanapos”.
A fiscalização daquele dia ainda passou pela ala feminina da cadeia de Benfica. Notaram que apenas uma presidiária tinha colchão mais grosso, talvez mais macio, destoante dos comuns usados nos presídios do Rio de Janeiro.7 Quem dormia nele? A funcionária apontou para a mulher que chegara no dia anterior ao cárcere. Era Adriana Ancelmo. Antes de ganhar a prisão domiciliar, Riqueza estava ali, presa a poucos metros do marido, que agora só podia lhe oferecer um colchão mais confortável na cadeia.