O que deveríamos saber sobre as pessoas que não conhecemos | Sextante
O que deveríamos saber sobre as pessoas que não conhecemos
NÃO FICÇÃO

O que deveríamos saber sobre as pessoas que não conhecemos

Em “Falando com estranhos”, Malcolm Gladwell mostra que as estratégias que usamos para interpretar os outros são equivocadas. “O que fazemos quando as coisas dão errado? Culpamos o estranho”

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Em “Falando com estranhos”, Malcolm Gladwell mostra que as estratégias que usamos para interpretar os outros são equivocadas. “O que fazemos quando as coisas dão errado? Culpamos o estranho”

A morte de Sandra Bland é o ponto de partida do livro Falando com estranhos”, de Malcolm Gladwell. Em 2015, nos Estados Unidos, uma mulher negra de 28 anos dirige seu carro até ser parada por um policial após mudar de pista sem sinalizar. A interação entre Bland e Encinia, um homem branco dois anos mais velho, é tensa desde o início. Mas não demora, transforma-se numa discussão mais acalorada e, depois, em confronto – o registro em áudio dessa abordagem sugere que o patrulheiro a agride. Bland é presa, encarcerada, e encontrada morta na cela três dias depois, o que foi noticiado pela imprensa como suicídio. 

O princípio da tragédia, não custa lembrar, foi uma mudança de faixa não sinalizada – Bland contou que trocou de pista justamente para o carro da polícia passar. O episódio alimentou o debate sobre racismo no país, já assombrado por um histórico de ações policiais desastrosas. Para Gladwell, o encontro à margem da rodovia revela também sobre como nos relacionamos com quem não conhecemos, tema do livro. 

“Se fôssemos mais ponderados como sociedade – se estivéssemos dispostos a nos engajarmos num exame de consciência sobre como abordamos e interpretamos as pessoas que não conhecemos –, ela não teria acabado morta”, avalia. Nas páginas de Falando com estranhos, a história de Bland se firma como espinha dorsal, ocupando trechos de diversos capítulos. O escritor destrincha o ocorrido, recuperando momentos anteriores de Encinia, elencando as inúmeras falhas de sua abordagem. Ao mesmo tempo, mostra como o policial é traído por suas crenças, especialmente ao se deixar levar por um pré-julgamento de inocência e culpa. “Na mente de Encinia, a conduta de Bland se enquadra no perfil de um criminoso potencialmente perigoso. Ela está agitada, irritável, confrontadora, volátil. Ele acha que ela está escondendo algo”, reforça Gladwell. 

De fato, era uma mulher contrariada, irritada por ter sido parada, mas não uma criminosa. Embora perceba o desconforto dela e pergunte se está tudo bem, o policial interpreta as ações de Bland de forma errada. “Ele se convence de que está resvalando para um confronto assustador com uma mulher perigosa”. O aspecto mais assustador da abordagem, nos lembra Gladwell, é que ela está em sintonia com a cartilha defendida pela polícia. “Alguém escreveu um manual de treinamento que estupidamente encorajou Brian Encinia a suspeitar de todo mundo, e ele levou aquilo a sério”. 

Julgamentos equivocados

Além do caso de Bland, o livro se ocupa em revelar detalhes por trás de outras muitas histórias de ressonância, cujos personagens são Fidel Castro, Sylvia Plath e os amigos da série “Friends”, por exemplo. Em comum, a presença de estranhos que conversam, negociam, discutem, divergem… Para desenvolver essas narrativas a partir de sua proposta central, Gladwell apresenta conceitos que ajudam a compreender o que motiva decisões aparentemente inesperadas. Um desses conceitos é o da transparência. Ou, segundo o escritor, a ideia de que o comportamento e a atitude das pessoas – a forma como representam a si mesmas exteriormente – fornecem uma janela autêntica e confiável para a forma como se sentem interiormente. Gladwell explica que a transparência é uma das ferramentas cruciais que empregamos para interpretar os estranhos. “Quando não conhecemos alguém, ou não conseguimos nos comunicar com ele, ou não temos tempo para entendê-lo corretamente, acreditamos que podemos interpretá-lo através de seu comportamento e de sua atitude”. Todo o desdobramento envolvendo a morte de Bland mostra como isso pode ser equivocado.  

O pressuposto da verdade é outra ferramenta. Ela se refere à capacidade de, num primeiro momento, acreditarmos no que estamos vendo. “Paramos de acreditar somente quando nossos receios e dúvidas chegam ao ponto em que não podemos mais dissipá-los”, explica. Sair desse modo de crença requer um gatilho, ou uma primeira faísca de dúvida. Para Gladwell, as duas estratégias para lidar com estranhos são falhas, embora socialmente necessárias:  “O primeiro conjunto de erros que cometemos com aqueles que não conhecemos – o pressuposto da verdade e a ilusão da transparência – tem a ver com nossa incapacidade de interpretar um estranho como um indivíduo”. 

Diante disso, o que precisa ser feito? O autor destaca que devemos entender a importância do contexto em que o estranho está agindo. Assim, ele aborda o acoplamento – a ideia que os comportamentos estão vinculados a circunstâncias e condições bem específicas -, conceito sintetizado na seguinte conduta: “Ao olhar para o estranho, não tire conclusões precipitadas. Olhe para o mundo do estranho”. Não é necessário ir muito longe para saber que isso foi esquecido – ou apenas ignorado – naquele dia de 2015, quando o carro de Sandra Bland foi parado. “Por não sabermos como falar com estranhos, o que fazemos quando as coisas dão errado? Culpamos o estranho”, ratifica Gladwell.

Este post foi escrito por:

Filipe Isensee

Filipe é jornalista, especialista em jornalismo cultural e mestrando do curso de Cinema e Audiovisual da UFF. Nasceu em Salvador, foi criado em Belo Horizonte e há oito anos mora no Rio de Janeiro, onde passou pelas redações dos jornais Extra e O Globo. Gosta de escrever: roteiros, dramaturgias, outras prosas e alguns poucos versos estão em seu radar.

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