Desfeita, refeita | Sextante

Desfeita, refeita

Ruth Manus

Poemas sobre o fim, o meio e o início

Poemas sobre o fim, o meio e o início

Ruth Manus é autora de outros sete livros, entre eles Um dia ainda vamos rir de tudo isso.

 

 

Seis anos depois de se mudar para Portugal para viver uma história de amor, Ruth Manus precisou enfrentar a dura realidade de que seu casamento terminara.

Diante da dor e da sensação inevitável de fracasso, ela escreveu poemas que acompanham o difícil período que viveu, assim como sua lenta recuperação.

Com ilustrações delicadas e sensíveis feitas por Maró Manus, mãe da autora, Desfeita, refeita é uma versão poética dessa jornada, entremeada por relatos em prosa que contam como as relações familiares de Ruth a levaram a descobertas libertadoras.

É um livro dedicado a todas as pessoas “que sangraram. Que se encolheram na cama. Que se amedrontaram com a hora de acordar. Mas que mesmo assim abriram os olhos e se levantaram”.

 

“A casa nova ainda não era dela

No papel, acima de tudo, não era dela

Mas ela entrou

Cuidadosa

Respirou fundo

Olhou para as paredes

Organizou 15 livros em cima de uma mesa

Maya e suas verdades

Virginia e sua bússola

Isabel e sua esperança

Enfileirou 12 pares de sapato

Tão diferentes

Uns dos outros

Como ela

E suas versões

Comprou banana-prata

Uma garrafa de rosé

E colocou lençóis floridos na cama

Sentou-se no chão da varanda

Era uma noite de verão

Abraçou seus joelhos

Olhou para o céu

– ventou –

E ela entendeu

Que a casa já era dela

Porque ela

Em si

Já era a própria casa.”

 

Ruth Manus, “Rosé”

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Ficha técnica
Lançamento 20/10/2022
Formato 14 x 21 cm
Número de páginas 160
Peso 250 g
Acabamento Brochura
ISBN 978-65-5564-482-1
EAN 9786555644821
Preço R$ 39,90
Ficha técnica e-book
eISBN 978-65-5564-483-8
Preço R$ 24,99
Ficha técnica audiolivro
ISBN 9786555645392
Duração 01h 27min
Locutor Ruth Manus
Lançamento 20/10/2022
Título original
Tradução
Formato 14 x 21 cm
Número de páginas 160
Peso 250 g
Acabamento Brochura
ISBN 978-65-5564-482-1
EAN 9786555644821
Preço R$ 39,90

E-book

eISBN 978-65-5564-483-8
Preço R$ 24,99

Audiolivro

ISBN 9786555645392
Duração 01h 27min
Locutor Ruth Manus
Preço US$ 7,99

Leia um trecho do livro

Nunca entendeu bem o porquê. Mas o fato é que, enquanto chorava de forma silenciosa na escuridão daquele voo longo, ia rodando no dedo anelar a aliança de casada da sua avó. Olhava para suas mãos. Sentia-se falhada por tantas razões. Nunca entendeu bem o porquê daquele presente. Por que ela? Por que para ela?

Quando seu avô morreu, arrastado para o outro lado por um câncer que não se dignou a dar mais do que 90 dias de aviso prévio, ela tinha 6 anos. Sua lembrança da dor era difusa. A imagem do avô já fraco, sentado na porta da casa térrea ao lado de uma pessoa qualquer vestida de branco. A lembrança de uma versão desconhecida da sua mãe, que sempre foi pilar e que não lhe pareceu um pilar àquela altura. Não entendeu muita coisa aos 6. Sentia que ainda entendia pouco aos 32.

O fato é que a avó passou a usar, no dedo anelar, a aliança do marido depois de sua partida. Talvez por simbolismo, talvez por conforto nos dedos que incharam com a velhice. Nunca soube. Nessa época, a avó pegou a aliança que outrora usava e guardou-a numa gaveta para, alguns anos mais tarde, entregá-la à neta. E agora ela estava ali, cruzando o Atlântico pela enésima vez, brincando com a aliança dourada no seu dedo fino, ouvindo músicas tristes enquanto algumas lágrimas que resistiam aos antidepressivos antroposóficos molhavam seu rosto.

Até outro dia, seu dedo acumulava três anéis em sequência. Em primeiro lugar a aliança da avó, em segundo uma aliança dourada cravejada de um topázio azul que comprou de presente para si mesma num saguão de aeroporto e, por fim, sua aliança de casada. Já não usava a última. Entregou-a ao ex-marido havia dois meses. Pediu a ele que um dia derretesse as duas alianças, transformando-as numa joia para a miúda, sua enteada.

Ela já não sabia onde vivia. Não sabia para onde ir, o que planejar ou onde situar os sonhos sobreviventes, aos quais se apegava como quem se agarra a uma corda à beira de um penhasco. Garantiu à miúda que Lisboa sempre seria sua casa, porque era lá que ela estava. E era verdade. O problema é que nem sempre conseguimos estar em casa. E foi por isso que embarcou. Porque a cidade ainda lhe doía muito. Porque o céu azul de Lisboa tinha a cor dos olhos dele. E o raro cinzento daquele céu nos dias de outono tinha a cor do peito dela nos últimos meses. E assim não funcionava. Porque seu peito sempre foi de um amarelo claro e luminoso. O cinza fazia-a sentir-se doente. E por isso, mais uma vez, estava cruzando o oceano.

Uns anos antes, ouviu um amigo dizer que detestava a palavra resiliência. A tal palavra que nos vende infelicidade travestida de comprometimento e esperança. Perguntava-se, por vezes, se não estava a caminho de se tornar uma daquelas mulheres que transformam a própria infelicidade em uma falsa missão familiar muito nobre, confundindo a cegueira voluntária com uma oferta desmedida de amor.

Mas, talvez num ato de generosidade, ele rompeu a missão resiliente dela. Ponto final. Minha decisão está tomada. Ela se limitou a aceitar. E eis que ela estava ali, TP83, poltrona 20C, corredor. Não fez alarde, disse apenas que não iria negociar. Talvez tenha chegado a negociar um pouco, mas não se envergonhava de ter ido até o final. Era a única coisa que lhe garantia alguma paz de espírito naquela turbulência.

Rodava a aliança da avó no dedo, como quem tenta acelerar o tempo, até um futuro próximo no qual as coisas já estivessem um pouco mais cicatrizadas. Ouvia pela quarta vez uma música cujo refrão dizia “Where were you in the morning, baby?” e enxugava o rosto com o dorso da mão.

Sentia-se derrotada. Já tinha sido adepta do discurso que diz que todas as relações dão certo, o que varia é o tempo. Às vezes dão certo por três meses, às vezes por três anos, às vezes até por trinta anos. Mas já não acreditava nisso. Para ela a lógica era assustadoramente simples: me casei desejando que aquilo fosse para a vida toda. E não foi. Ponto. Não deu certo. O plano não deu certo, simples assim. Achava mais honesto consigo mesma assumir a derrota do que maquiá-la todo dia pela manhã.

Sentia-se inábil. Não queria ser daquelas pessoas que despejam toda a responsabilidade do desamor no outro. Queria evoluir, queria saber onde tinha errado. Mas, no fim das contas, a vida é cheia dessas perguntas sem resposta. Nunca saberia para onde as rotas alternativas os levariam. E, muito provavelmente, essa incógnita seria sua companheira pelo resto da vida, assim como a sarda gigante que se instaurou na sua bochecha nos últimos anos e que a incomodou mais uma vez quando foi ao banheiro do avião depois de comer aquela massa excessivamente cozida.

Sentia culpa. Sentia culpa perante seus pais, que sofriam com aquela separação tanto quanto ela. Não por moralismo ou por princípios. Por amor mesmo – o que dói infinitamente mais. Amor por ela, amor por ele, amor pelo sonho conjunto que naufragou. Sentia culpa perante a enteada, que merecia uma família sólida, merecia irmãos, merecia um lar que não fosse desfeito outra vez. Culpava-se por não ter conseguido fazer com que o amor bastasse. Porque havia amor, disso não tinha dúvida. Mas a convivência é subestimada. O amor não sobrevive a tudo. Pelo menos não aquele amor, que na sua cabeça era tão enorme, tão gigante.

Sentia vergonha. Tinha escrito tantas coisas bonitas

para o mundo. Inspirou tantas histórias de amor com suas palavras doces, com sua fé nas uniões sinceras, com sua esperança imbatível que tudo atravessava. E, de repente, tudo se esfarelava, se perdia no vento, quase como um deboche à sua vontade tão latente de acreditar.

Sentia medo. O que viria dali para a frente? Sabia que viveria outras histórias de amor. Sabia que teria novos primeiros beijos e risos e noites e esperas ansiosas nos dias seguintes. Mas isso efetivamente bastaria para seguir em frente de corpo e alma? Seria capaz de recomeçar um quebra-cabeça de mil peças? Teria a coragem necessária para acreditar genuinamente outra vez? Não sabia. Realmente não sabia.

No seu casamento, foi sua avó quem abençoou as alianças. Foi um dos rituais mais bonitos que já viu na vida. Fechava os olhos e conseguia estar ali outra vez. O sol se punha por trás das árvores, a temperatura de setembro era boa. As palavras da avó, em sua voz trêmula, emocionaram todos que estavam ali. Sem exceção. Até um amigo alemão chorou.

Por que, então? Por que não funcionou? Com tanto amor, tanta vontade, tantas bênçãos? Fechou os olhos úmidos, ainda tentava entender. Abriu os olhos. A aliança da avó seguia ali. Por que para ela? Por que não para sua mãe ou sua tia, como seria lógico? Por que não para sua irmã mais velha ou para uma das suas primas? Elas se casaram antes. Elas seguiam casadas. Por que para ela? Logo ela. Aquela cujo navio naufragou. Aquela cujo para sempre foi um para sempre magro, faminto, raquítico. Aquela que não presenteou a família com bebês deslumbrantes. Aquela que naufragou, em si.

Chegou em casa. Já sentia que as malas eram meras extensões dos seus membros. Vivia de mudança. Estava sempre de partida. Estava partida. Tirou os sapatos. A geladeira vazia, o aquecedor de água desligado. Abriu o armário, retirou uma caixinha. Tirou a aliança da avó do dedo e guardou-a com lágrimas nos olhos e com plena clareza de que seu dedo magro não era capaz de honrar o peso daquela história de amor.

 

[Alerta]

Corria na rua
Mais mais mais
Até doer
Até anestesiar
Corria na rua
Corria de tudo
O que estava
Das suas costas para trás
Corria focada
Pé ante pé
Até que
– um estrondo –
Olhou para cima
Não era o fim do mundo
– ainda –
Era só um portão
Que bateu
Porque as coisas batem
– às vezes –
Estava olhando para o portão
E não foram mais de dois segundos
Entre tropeçar na raiz da árvore
E cair
De joelho
Não entendeu
O trajeto
Até estar no chão
Caída
De joelho
Na pedra portuguesa
Pontuda
Agressiva
Como se quisesse ferir
Propositalmente
Seu joelho
Se arrastou para casa
Uma dor
Que outrora
Seria difícil de narrar
Mas não agora
Que era íntima das dores
Mais profundas
Não agora
Que ela entendia
De dor
Narrou o tombo
Para muita gente
Rindo sem querer rir
Aí ouvi o estrondo
Era só um portão
Mas não deu tempo
Quando vi
Já estava no chão
De joelho
Estatelada
Contava rindo
Como se a dor não tivesse sido tanta
E como se houvesse
Razão para rir
Foram muitos meses
E médicos e sessões
E dinheiros
E dores
E dores
E dores
Foi muito tempo
Para voltar a ter um joelho
Que não doesse
Um joelho, simplesmente
Sem narrativas outras

Foi muito tempo
E nesse tempo
Descobriu
Que falar tanto
Sobre
Tombo
E dor no joelho
Não quer dizer
– em nenhum momento –
Maldizer a árvore
Que a fez cair
Este, sim, é um livro
De dor
Na alma
E no joelho
Um livro
Sobre quedas
Mas nunca um livro
Para falar mal
De árvore
Nenhuma.

 

Campo pequeno

Olhava para o mundo
Cheio de cores e carros
Cheio de prédios e pedras
Cheio de pessoas e passos
E tudo o que via
Era um vazio
Profundo e silencioso
Triste
Imenso
E sem propósito
Simplesmente
Porque ele havia dito
Que já não haveria nós
E sem nós
Para ela
– sangrando e confusa –
Já não havia

 

Bolt

Era uma noite de quinta-feira
Deitada na cama, pensou no fim

– andava evitando pensar no fim
porque era uma pessoa de começos –

Afundou a cabeça no travesseiro branco
Resistiu

Pegou o celular com as mãos fracas
Mandou uma mensagem para um rapaz de olhos verdes
E para outro, com pele cor de chocolate amargo
Riu sem querer rir
Riu porque era o que ela sabia fazer

Retornou
Fechou os olhos
E o choro veio a galope
Convulsivo
Entendeu que o fim só existe
Quando a gente passa por ele
Como a linha de chegada de uma corrida
– mas a faixa que se atravessa
É arame farpado.

 

Gaveta

Encontrou um poema de dois anos antes
– daquele tempo bom –
antes da casa cair,
das certezas escoarem pelo ralo,
do peito tornar-se vazio de vermelho
e tão cheio de cinza
– daquele tempo bom –
em que havia riso
futuro e
ninho.

Leu
E ele era triste.

[Talvez o tempo bom fosse uma ficção
uma fantasia qualquer
que ela tinha inventado
por não querer ir embora.]

 

Não

Quando alguém sente
Que está se desfazendo
Por dentro
Ninguém deveria ousar dizer
De forma suave
Que talvez
Tenha sido melhor assim
– porque ninguém
no mundo
consegue acreditar
que essa estranha
sensação de morte
em vida
pode vir a ser seu caminho sangrento
para dias mais felizes

[possivelmente o melhor seja não dizer nada]
[um abraço silencioso talvez].

 

Engano

Quando dormiu com a miúda
Pela primeira vez
Depois do apocalipse
Ficaram de mãos dadas a noite toda

Viravam-se
Mexiam-se
E se reencontravam
A mão dela sempre estava à procura da sua
E a sua da dela

Acordou com dores na alma
Porque por tantos meses
Durante a noite
Segurou suas próprias mãos
Solitárias
Uma contra a outra

Sem saber que no quarto ao lado
Uma mãozinha
Tão mais bonita
Esperava-a
Sem desistir.

 

Reflexo

Cada vez que me olhava no espelho
Procurava em mim
O que teria feito ele ir embora.

 

Dilacerante

Quando sofri tanto
Pela primeira vez
Descobri que casais abraçados
Mulheres grávidas
Bebês risonhos
Famílias almoçando
E mãos dadas
De diversas espécies
Podem ferir
Muito mais
Do que objetos cortantes
Pontiagudos
E armas de fogo.

 

Ignorância

Eu não conhecia esse nó na garganta
Que impede de comer, de beber e de gritar
Não conhecia esse medo assombroso
Do futuro [e de tudo mais que ainda virá]
Eu não conhecia essas noites tão longas
Nas quais é horrível dormir e ainda pior acordar

Eu não conhecia essa falta de ar
Essa falta de amparo, essa falta de chão
Não conhecia esse desconsolo gigante
Que faz toda resposta ser sempre não
Eu não conhecia essa angústia tão funda
Essa dor tão aguda, essa brutal solidão.

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Ruth Manus

Sobre o autor

Ruth Manus

RUTH MANUS é advogada e concluiu seu doutorado em Direito Internacional pela Faculdade de Di­reito da Universidade de Lisboa, onde também cursou pós-graduação em Direito Europeu. É mestre em Direito do Trabalho, com ênfase no trabalho feminino, pela PUC-SP. Também atua como palestrante e é colunista do jornal português Obser­vador. É autora de outros sete livros, entre eles Um dia ainda vamos rir de tudo isso; Mulheres não são chatas, mu­lheres estão exaustas, Guia prático antimachismo e 10 histórias para tentar entender um mundo caótico – este último, em coautoria com Jamil Chade, foi fi­nalista do prêmio Jabuti 2021 –, publicados pela Editora Sextante.  

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