Ruy e a palavra – Ruy é a palavra
por Pascoal Soto
A mãe lia em voz alta as crônicas que um certo Nelson Rodrigues escrevia na Última Hora. Em seu colo, o menino de seus 4 ou 5 anos de idade ouvia tudo em silêncio enquanto mirava as palavras impressas no jornal. Amor.
O menino não tardou em perceber que as palavras impressas tinham o condão de guardar histórias, emoções, personagens. Aprendeu a ler sozinho, movido pela curiosidade e… pelo amor. Ainda em menino, começou a escrever suas próprias histórias. Talvez já soubesse que aquilo seria o seu destino, a sua sina. Amor.
O menino se tornou homem e tudo o que construiu na vida está relacionado à palavra escrita. Dessa relação íntima e apaixonada surgiram algumas das mais preciosas obras da literatura brasileira, entre elas uma que se chama O anjo pornográfico, biografia de… Nelson Rodrigues. Amor.
Heloisa Seixas, companheira e musa, diz que a persona particular de Ruy é bem diferente da que todos conhecem. “Ruy é um poço de ternura”, diz, emocionada. Amor.
Neste A arte de querer bem, reunimos algumas das crônicas em que Ruy Castro exercita o seu amor pela vida, pelos amigos, pela sua cidade, pelos seus ídolos, pelo seu ofício.
Pela palavra.
Exercícios de amor
Por um palmo
Foi há sessenta anos, numa pequena cidade mineira. Getúlio se matara naquela manhã de 24 de agosto. Dera no Repórter Esso, com a voz de Heron Domingues dividindo a história do Brasil em antes e depois. Ao observar os adultos à sua volta, o menino de 6 anos dividiu-a de outra maneira. Havia os que choravam pela morte do líder e os que, como seu pai, pareciam cabreiros –, detestavam o líder, mas não esperavam por tal desfecho.
Algumas horas depois, levado pela mão, o garoto estava ao lado de seu pai numa esquina em que se discutia a morte de Getúlio. Era uma roda de homens de terno, alguns de chapéu e todos, embora da oposição, consternados – nenhum deles ostentava triunfalismo ou deboche. E, de repente, cai de uma sacada sobre eles uma máquina de escrever – a um palmo do menino.
Era uma máquina preta, alta, de mesa, talvez uma Royal. Veio de uma altura de pelo menos 5 metros e espatifou-se na calçada, teclas de aço voando para todo lado. No sobrado morava um ardente getulista, certamente desesperado. Não sei se meu pai subiu na hora para tomar satisfações ou se alguém fez isso por ele. Investigação posterior revelou que o homem estava embriagado.
Dali a meses, com a família no Rio, meu pai soube que o Palácio do Catete abrira ao público o quarto onde Getúlio se matara. Foi até lá para ver e me levou com ele. Ainda me lembro dos móveis, da cama e, incrivelmente, sobre esta, o famoso pijama listrado, com o buraco da bala. Acho que meu pai queria se certificar de que Getúlio morrera mesmo. Na saída, assinamos o livro de visitas. Se ainda existir, terá o meu nome nele, em dezembro de 1954.
Nada de mais em tudo isso. Exceto que, por um palmo, eu poderia ter sido morto pelo objeto – a máquina de escrever – que, um dia, se tornaria minha extensão em cabeça, tronco e membros, a ponto de nem eu enxergar os limites.