Brasil de todos os cantos
Na proa, sob a cruz estampada no velame, o órgão de frei Maffeo modulava uma melodia sacra – sinuosa e solene. Na praia, sob o dossel da floresta, os tupis chacoalhavam seus maracás; os guizos em seus tornozelos balançando no compasso da criação. Pouco depois, um marujo dedilhava a gaita enquanto Bartolomeu Dias dava uma cambalhota (ou “salto real”) nas areias faiscantes de Porto Seguro, surpreendendo a indiada. Mas não tanto quanto os nativos iriam estarrecer os portugueses tão logo soprassem suas flautas: elas eram feitas das tíbias dos inimigos que eles haviam devorado.
A trilha sonora do descobrimento do Brasil foi polimorfa, polifônica, ritualística e, é claro, antropofágica. Soou, desde o primeiro dia, como uma amostra rumorosa do que estava por vir: o nascimento de uma nação destinada a se tornar uma das mais musicais do mundo, na qual todos os cantos, todos os ritmos e todas as vozes afinaram-se para fazer com que o planeta, mais do que somente girar, bailasse… Claro que, naquele alvorecer, quando lusos e tupiniquins cantaram e dançaram juntos, ao som do mar e à luz do céu profundo, ainda faltava o ingrediente primordial: os ritmos, as danças e os cânticos que viriam da África. Quando eles chegaram – em meio às indizíveis infâmias do tráfico de escravos –, a alquimia sonora se completou e o Brasil forjou a música que, desde então, tem ajudado o mundo a não ser tão ruim da cabeça e doente do pé.
Mas ainda seria preciso esperar quase três séculos para que o lundu africano e a modinha portuguesa concretizassem seu flerte, misturando a casa-grande e a senzala para dar à luz o bendito fruto do maxixe. Consubstanciou-se assim o mistério do samba – ou “semba”: o santo batuque, a dança lasciva, o ritmo hipnótico, a pulsação do bumbo na mão dos bambas, umbigo contra umbigo, batendo no ritmo do coração.
E, no entanto, tudo era só ritmo, dança e celebração – não eram canções no sentido pleno da palavra. As canções, específicas e únicas, são fruto direto e dileto do século do individualismo e da solidão –
o breve e terrível século XX. E foi quando as canções entraram em cena que a música brasileira se tornou a mais perfeita tradução do país: seu retrato mais fiel, seu mais exato reflexo. Nelson Motta, o branco gato de alma negra, homem de sete vidas e sete instrumentos, é um maduro filho do século e um típico fruto do Brasil moderno. Até porque faz cinco décadas que entrou em cena (em 1966, com sua “Saveiros”). Quase 50 canções depois, tendo vivido frenéticos dancing days e amenas noites tropicais, Nelsinho, sabendo que a vida vem em ondas como o mar, mergulhou no cancioneiro nacional para forjar um cânone – o seu cânone, pessoal e intransferível, mas pronto para ser apropriado por quem quer que o queira. E foi assim que se alinharam estas 101 canções que tocaram o Brasil.
O desfile se inicia com uma marcha-rancho, abrindo alas para Dona Chiquinha Gonzaga passar antes do século raiar (a música é de 1899). Mas logo Nelson Motta vai ao telefone, se liga na era do rádio, sintoniza a TV, passa pelo beco das garrafas e pelo clube da esquina, vive a vida sobre as ondas numa tarde em Itapuã, assobia canções do exílio, canções de protesto e canções do amor sem fim, flertando com a garota de Ipanema até pintar sua aquarela do Brasil com a cor do pecado. Tudo com a luxuosa ajuda do pandeiro de Antônio Carlos Miguel, seu fiel escudeiro nessa jornada musical.
Quando a última letra se vai e vira-se a derradeira página, os sons ainda ecoam, convidando o leitor a entrar na parceria e recordar a trilha sonora de sua própria vida. Para, assim, cantarolar as canções que tornaram o Brasil e o mundo um lugar muito mais afinado.
— Eduardo Bueno
Curador da coleção Brasil 101
Brasil de todos os cantos
Na proa, sob a cruz estampada no velame, o órgão de frei Maffeo modulava uma melodia sacra – sinuosa e solene. Na praia, sob o dossel da floresta, os tupis chacoalhavam seus maracás; os guizos em seus tornozelos balançando no compasso da criação. Pouco depois, um marujo dedilhava a gaita enquanto Bartolomeu Dias dava uma cambalhota (ou “salto real”) nas areias faiscantes de Porto Seguro, surpreendendo a indiada. Mas não tanto quanto os nativos iriam estarrecer os portugueses tão logo soprassem suas flautas: elas eram feitas das tíbias dos inimigos que eles haviam devorado.
A trilha sonora do descobrimento do Brasil foi polimorfa, polifônica, ritualística e, é claro, antropofágica. Soou, desde o primeiro dia, como uma amostra rumorosa do que estava por vir: o nascimento de uma nação destinada a se tornar uma das mais musicais do mundo, na qual todos os cantos, todos os ritmos e todas as vozes afinaram-se para fazer com que o planeta, mais do que somente girar, bailasse… Claro que, naquele alvorecer, quando lusos e tupiniquins cantaram e dançaram juntos, ao som do mar e à luz do céu profundo, ainda faltava o ingrediente primordial: os ritmos, as danças e os cânticos que viriam da África. Quando eles chegaram – em meio às indizíveis infâmias do tráfico de escravos –, a alquimia sonora se completou e o Brasil forjou a música que, desde então, tem ajudado o mundo a não ser tão ruim da cabeça e doente do pé.
Mas ainda seria preciso esperar quase três séculos para que o lundu africano e a modinha portuguesa concretizassem seu flerte, misturando a casa-grande e a senzala para dar à luz o bendito fruto do maxixe. Consubstanciou-se assim o mistério do samba – ou “semba”: o santo batuque, a dança lasciva, o ritmo hipnótico, a pulsação do bumbo na mão dos bambas, umbigo contra umbigo, batendo no ritmo do coração.
E, no entanto, tudo era só ritmo, dança e celebração – não eram canções no sentido pleno da palavra. As canções, específicas e únicas, são fruto direto e dileto do século do individualismo e da solidão –
o breve e terrível século XX. E foi quando as canções entraram em cena que a música brasileira se tornou a mais perfeita tradução do país: seu retrato mais fiel, seu mais exato reflexo. Nelson Motta, o branco gato de alma negra, homem de sete vidas e sete instrumentos, é um maduro filho do século e um típico fruto do Brasil moderno. Até porque faz cinco décadas que entrou em cena (em 1966, com sua “Saveiros”). Quase 50 canções depois, tendo vivido frenéticos dancing days e amenas noites tropicais, Nelsinho, sabendo que a vida vem em ondas como o mar, mergulhou no cancioneiro nacional para forjar um cânone – o seu cânone, pessoal e intransferível, mas pronto para ser apropriado por quem quer que o queira. E foi assim que se alinharam estas 101 canções que tocaram o Brasil.
O desfile se inicia com uma marcha-rancho, abrindo alas para Dona Chiquinha Gonzaga passar antes do século raiar (a música é de 1899). Mas logo Nelson Motta vai ao telefone, se liga na era do rádio, sintoniza a TV, passa pelo beco das garrafas e pelo clube da esquina, vive a vida sobre as ondas numa tarde em Itapuã, assobia canções do exílio, canções de protesto e canções do amor sem fim, flertando com a garota de Ipanema até pintar sua aquarela do Brasil com a cor do pecado. Tudo com a luxuosa ajuda do pandeiro de Antônio Carlos Miguel, seu fiel escudeiro nessa jornada musical.
Quando a última letra se vai e vira-se a derradeira página, os sons ainda ecoam, convidando o leitor a entrar na parceria e recordar a trilha sonora de sua própria vida. Para, assim, cantarolar as canções que tornaram o Brasil e o mundo um lugar muito mais afinado.
— Eduardo Bueno
Curador da coleção Brasil 101