O lado doce da melancolia | Sextante

O lado doce da melancolia

Susan Cain

A arte de transformar a dor em criatividade, transcendência e amor

A arte de transformar a dor em criatividade, transcendência e amor

“Essa ideia – de transformar a dor em criatividade, transcendência e amor – é a essência deste livro.” – Susan Cain

Apontada como uma das dez pessoas mais influentes do mundo pelo LinkedIn, Susan Cain é autora do premiado O poder dos quietos, que já vendeu mais de 4 milhões de exemplares.

“Este livro abre seus olhos, toca seu coração e canta para sua alma. É a cura para a positividade tóxica e uma ode à beleza da condição humana.” – Adam Grant

 

“Este livro trata da personalidade melancólica, que chamo de ‘agridoce’: a tendência a estados de nostalgia, pungência e tristeza; uma consciência aguçada da passagem do tempo; e uma alegria curiosamente intensa diante da beleza do mundo.

O caráter agridoce das coisas também se refere ao reconhecimento de que luz e escuridão, nascimento e morte, amargura e doçura estão para sempre unidos.  Mas o que isso significa, exatamente?

Passei anos pesquisando essa questão, seguindo uma trilha dei­xada por artistas, escritores, pensadores, psi­cólogos, cientistas e até analistas da área de administração.

Concluí que o caráter agridoce não é apenas um sentimento momentâneo. É um modo de ser, uma resposta autêntica ao problema de estar vivo em um mundo profundamente imperfeito e teimosamente belo.

Acima de tudo, o agridoce nos mostra como responder à dor: reconhe­cendo-a e tentando transformá-la em arte, em cura, inovação ou qualquer outra coisa capaz de nutrir a alma.

Se não elaborarmos nossas tristezas e anseios, podemos acabar impondo-os aos outros por meio de maus-tratos, dominação, negligência. Mas se per­cebemos que todos os humanos conhecem a perda e o sofrimento, podemos nos voltar uns para os outros.

Essa ideia – de transformar a dor em criatividade, transcendência e amor – é a essência deste livro.” – Susan Cain

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Ficha técnica
Lançamento 13/09/2022
Título original Bittersweet
Tradução Heci Regina Candiani
Formato 16 x 23 cm
Número de páginas 272
Peso 350 g
Acabamento Brochura
ISBN 978-65-5564-460-9
EAN 9786555644609
Preço R$ 59,90
Ficha técnica e-book
eISBN 978-65-5564-461-6
Preço R$ 34,99
Ficha técnica audiolivro
ISBN 9786555645262
Duração 10h 16min
Locutor Elaine Correia
Lançamento 13/09/2022
Título original Bittersweet
Tradução Heci Regina Candiani
Formato 16 x 23 cm
Número de páginas 272
Peso 350 g
Acabamento Brochura
ISBN 978-65-5564-460-9
EAN 9786555644609
Preço R$ 59,90

E-book

eISBN 978-65-5564-461-6
Preço R$ 34,99

Audiolivro

ISBN 9786555645262
Duração 10h 16min
Locutor Elaine Correia
Preço US$ 7,99

Leia um trecho do livro

Nota da autora

 

Venho trabalhando neste livro oficialmente desde 2016 e extraoficialmente (como você lerá a seguir) ao longo de toda a minha vida. Entre conversas, leituras e correspondências, consultei centenas de pessoas a respeito de todas as coisas agridoces. Cito algumas dessas pessoas explicitamente; outras influenciaram minhas ideias. Adoraria mencionar o nome de todas elas, mas isso teria produzido um livro ilegível. Por isso, alguns nomes aparecem apenas nas notas e nos agradecimentos; outros, sem dúvida, deixei de fora por engano. Sou grata a todas essas pessoas.

Também em prol da fluidez da leitura, não usei elipses nem colchetes em certas citações, mas me certifiquei de que as palavras extras ou ausentes não mudaram o sentido do que o autor disse. Se você quiser citar essas fontes escritas a partir do original, a maioria das menções completas aparece nas notas ao final do livro.

Por fim, alterei nomes e detalhes que identificam algumas das pessoas cujas histórias eu conto. Não apurei os fatos das histórias que as pessoas me contaram sobre si mesmas, mas só incluí relatos que acreditei serem verdadeiros.

 

PRELÚDIO

O violoncelista de Sarajevo

 

Certa noite, sonhei que me encontrava com minha amiga Mariana, que é poeta, em Sarajevo, a cidade do amor. Acordei confusa. Sarajevo, um símbolo do amor? Sarajevo não foi o palco de uma das guerras civis mais sangrentas do final do século XX?

Então me lembrei.

Vedran Smailović.

O violoncelista de Sarajevo.

 

 

É 28 de maio de 1992 e Sarajevo está sitiada. Durante séculos, muçulmanos, croatas e sérvios viveram juntos nessa cidade de bondes e confeitarias, cisnes deslizando no lago dos parques, mesquitas otomanas e catedrais da Igreja Ortodoxa. Uma cidade de três religiões, três povos, embora, até recentemente, ninguém prestasse muita atenção em quem era quem. As pessoas sabiam, mas não sabiam; preferiam ver umas às outras como vizinhas que se encontravam para tomar um café ou comer kebabs, que cursavam a mesma universidade e às vezes se casavam e tinham filhos.

Mas então veio a guerra civil. Homens nas colinas que ladeiam a cidade cortaram o abastecimento de eletricidade e água. O estádio olímpico de 1984 foi destruído pelo fogo e seu campo foi transformado num cemitério improvisado. Os prédios residenciais estão todos furados pelos ataques com morteiros, os semáforos estão quebrados, as ruas, silenciosas. O único ruído é o estampido de tiros.

Até este momento – quando as melodias do Adágio em Sol Menor de Albinoni* tomam a rua de pedestres em frente a uma padaria bombardeada.

Você conhece essa música? Se não, talvez devesse fazer uma pausa para ouvi-la agora mesmo: https://youtu.be/kn1gcjuhlhg. É desconcertante, é primorosa, é infinitamente triste.

Vedran Smailović, primeiro violoncelista da orquestra da Ópera de Sarajevo, toca em homenagem às 22 pessoas mortas no dia anterior por artilharia de morteiro enquanto esperavam na fila do pão. Smailović estava nas redondezas quando o projétil explodiu; ele ajudou a socorrer os feridos. Agora ele está de volta à cena da carnificina, vestido para uma noite na Ópera, com camisa social branca e fraque preto. Ele se senta entre os escombros, numa cadeira branca de plástico, o violoncelo apoiado entre as pernas. As notas melancólicas do adágio pairam suspensas no céu.

Por todo lado, fuzis disparam, bombas explodem, metralhadoras estalam. Smailović segue tocando. Ele fará isso ao longo de 22 dias – um dia para cada pessoa morta na padaria. De algum modo, as balas nunca chegarão a atingi-lo.

Esta é uma cidade construída num vale, cercada de montanhas de onde os franco-atiradores miram cidadãos famintos em busca de pão. Algumas pessoas esperam horas para atravessar a rua e então saem em disparada até o outro lado como um cervo sendo caçado. Mas aqui está um homem sentado, imóvel, a céu aberto, vestido com a elegância de trajes de concerto, como se tivesse todo o tempo do mundo.

“Você me pergunta se sou louco por tocar violoncelo em uma zona de guerra”, diz ele. “Por que não pergunta a ELES se são loucos por bombardear Sarajevo?”

O gesto dele reverbera por toda a cidade, pelas ondas do rádio. Em breve, será contado num romance, num filme. Mas, antes disso, durante os dias mais sombrios do cerco, Smailović inspirará outros músicos a tomarem as ruas com seus próprios instrumentos. Eles não tocam marchas militares para encorajar as tropas contra os franco-atiradores, nem canções populares para dar ânimo ao povo. Tocam Albinoni. Os destruidores atacam com armas e bombas, e os músicos respondem com a canção mais triste que conhecem.

Não somos combatentes, clamam os violinistas; tampouco somos vítimas, completam as violas. Somos apenas humanos, cantam os violoncelos, apenas humanos: imperfeitos, belos, ávidos por amor.

Alguns meses se passam. A guerra civil prossegue e o correspondente estrangeiro Allan Little assiste enquanto uma procissão de 40 mil civis emerge de uma floresta. Eles vinham se arrastando pela floresta por 48 horas seguidas, fugindo de um ataque.

Entre eles está um homem de 80 anos que parece desesperado, exausto. O homem se aproxima de Little, pergunta se ele viu a esposa dele. Eles haviam se separado na longa caminhada, conta o homem.

Little não a viu, mas, como o ótimo jornalista que é, pergunta se o homem é muçulmano ou croata. E a resposta do homem, Little revela anos depois em um programa da BBC, ainda o envergonha, mesmo décadas mais tarde:

“Eu sou músico.”

 

INTRODUÇÃO

 

O poder do agridoce

 

Temos saudade de casa, e sempre,
de um mundo outro e diferente.
– Vita Sackville-West, The Garden

 

Certa vez, quando eu tinha 22 anos e estava na faculdade de direito, alguns amigos foram me buscar no dormitório para ir à aula. Eu estava contente, ouvindo uma música suave em tom menor. Não era a de Albinoni, que nunca tinha ouvido até então. É provável que fosse alguma canção do meu músico favorito de todos os tempos, Leonard Cohen – também conhecido como o Poeta Laureado do Pessimismo.

É difícil colocar em palavras o que sinto quando ouço músicas desse tipo. Tecnicamente, elas são tristes, mas o que sinto, na verdade, é amor: uma onda imensa transbordando amor. Uma profunda afinidade com todas as outras almas do mundo que conhecem a tristeza que a música se esforça para expressar. Um fascínio pela capacidade que o músico tem de transformar a dor em beleza. Se estou sozinha enquanto ouço, muitas vezes faço um gesto espontâneo de prece, mãos diante do rosto, palmas unidas, mesmo que eu seja profundamente agnóstica e não costume rezar. Mas a música abre meu coração: literalmente a sensação de expansão dos músculos do peito. Ela chega a fazer parecer aceitável que todas as pessoas que amo – inclusive eu – vão morrer um dia. Essa equanimidade em relação à morte dura no máximo três minutos, mas todas as vezes me transforma um pouco. Se você definir a transcendência como um momento em que seu eu se desvanece e você se sente em conexão com o todo, esses momentos musicalmente agridoces são o mais próximo que cheguei dessa experiência. Mas isso já aconteceu muitas e muitas vezes.

E nunca consegui entender por quê.

Enquanto isso, meus amigos se divertiam com a incoerência de um aparelho de som num dormitório universitário berrando canções tristíssimas. Um deles perguntou por que eu estava ouvindo música fúnebre. Eu ri e fomos para a aula. Fim da história.

Exceto pelo fato de que fiquei pensando no comentário dele pelos 25 anos seguintes. Por que eu achava músicas melancólicas tão estranhamente animadoras? E o que em nossa cultura leva as pessoas a fazerem piada com isso? Por que, mesmo ao escrever isso, sinto a necessidade de dizer que também gosto de música dançante? (E gosto mesmo.)

No início, essas eram apenas perguntas interessantes. Mas, à medida que buscava respostas, percebi que aquelas eram as perguntas, as grandes perguntas, e que a cultura contemporânea nos treinou – para nosso profundo empobrecimento – a não perguntá-las.

Há mais de 2 mil anos, Aristóteles se questionava por que os grandes poetas, filósofos, artistas e políticos muitas vezes têm uma personalidade melancólica.2 Seu questionamento se baseava na antiga crença de que o corpo humano contém quatro humores, ou substâncias líquidas, cada um correspondendo a um temperamento diferente: melancólico (triste), sanguíneo (feliz), colérico (agressivo) e fleumático (calmo). Pensava-se que as quantidades relativas desses líquidos moldavam nosso caráter. Hipócrates, o famoso médico grego, acreditava que a pessoa ideal desfrutava de um equilíbrio harmonioso dos quatro. Mas muitos de nós tendem para uma ou outra direção.

Este livro trata da direção melancólica, que chamo de “agridoce”: a tendência a estados de nostalgia, pungência e tristeza; uma consciência aguçada da passagem do tempo; e uma alegria curiosamente pungente diante da beleza do mundo. O caráter agridoce das coisas também se refere ao reconhecimento de que luz e escuridão, nascimento e morte, amargura e doçura estão para sempre unidos. “Um dia é do mel, outro é da cebola”, diz um provérbio árabe. A tragédia da vida está inevitavelmente ligada ao seu esplendor. Você poderia destruir a civilização por completo e reconstruí-la do zero – e as mesmas dualidades viriam à tona. No entanto, habitar essas dualidades de forma plena, tanto a escuridão quanto a luz, é, paradoxalmente, a única maneira de transcendê-las. E o objetivo maior é esse. O agridoce tem a ver com o desejo de comunhão, com o desejo de voltar para casa.

Caso você se veja como alguém do tipo agridoce, é difícil discutir a pergunta de Aristóteles sobre a melancolia das pessoas notáveis sem parecer arrogante. Mas o fato é que essa observação feita por ele ressoou ao longo dos milênios. No século XV, o filósofo Marsilio Ficino afirmou que Saturno, o deus romano associado à melancolia, “abriu mão da vida cotidiana e a entregou a Júpiter, mas reivindicou para si uma vida solitária e divina”. O artista do século XVI Albrecht Dürer criou uma representação célebre da Melancolia como um anjo caído cercado por símbolos de criatividade, conhecimento e anseio: um poliedro, uma ampulheta, uma escada subindo ao céu. O poeta do século XIX Charles Baudelaire “dificilmente concebia uma forma de beleza” na qual não houvesse melancolia.

Essa visão romântica da melancolia vai e vem ao longo do tempo. Mais recentemente, em um influente ensaio de 1918, Sigmund Freud não levou a melancolia a sério, alegando que não passava de narcisismo. Desde então, ela desapareceu no abismo da psicopatologia. Hoje a psicologia dominante8 a vê como sinônimo de depressão clínica.*

Mas a questão de Aristóteles nunca se resolveu. Nem poderia. Há alguma propriedade misteriosa na melancolia, algo essencial. Platão era melancólico, assim como Jalal al-Din Rumi, Charles Darwin, Abraham Lincoln, Maya Angelou, Nina Simone… Leonard Cohen.

Mas o que isso significa, exatamente?

Passei anos pesquisando essa questão, seguindo uma trilha secular deixada por artistas, escritores, pensadores e tradições de sabedoria do mundo todo. Esse caminho também me levou ao trabalho contemporâneo de psicólogos, cientistas e até mesmo analistas da área de administração (que descobriram alguns dos pontos fortes exclusivos de pessoas melancólicas em postos de liderança e na área de criação das empresas, além das melhores maneiras de aproveitá-los). E concluí que esse caráter agridoce não é, como temos tendência a pensar, apenas um sentimento ou acontecimento momentâneo. É também uma força silenciosa, um modo de ser, uma tradição célebre – e tão negligenciada quanto transbordante de potencial humano. É uma resposta autêntica e edificante ao problema de estar vivo em um mundo profundamente imperfeito e teimosamente belo.

Acima de tudo, o comportamento agridoce nos mostra como responder à dor: reconhecendo-a e tentando transformá-la em arte, como fazem os músicos, ou em cura, inovação ou qualquer outra coisa capaz de nutrir a alma. Se não transformarmos nossas tristezas e anseios, podemos acabar impondo-os aos outros por meio de maus-tratos, dominação, negligência. Mas se percebemos que todos os humanos conhecem, ou virão a conhecer, a perda e o sofrimento, podemos nos voltar uns para os outros.* Essa ideia – de transformar a dor em criatividade, transcendência e amor – é a essência deste livro.

A comunidade ideal, como o ser humano ideal, incorporaria todos os quatro temperamentos hipocráticos. Mas, assim como as pessoas têm tendência em uma ou outra direção, o mesmo acontece com as sociedades. E, como veremos no Capítulo 5, organizamos a cultura dos Estados Unidos em torno do sanguíneo e do colérico, que associamos a dinamismo e força.

Essa mentalidade sanguíneo-colérica é proativa e está pronta para o combate, valoriza quem vai atrás dos próprios objetivos na vida pessoal e aprecia a indignação moralmente correta on-line. Deveríamos ser durões, otimistas e assertivos; ter a confiança necessária para falar o que pensamos e as habilidades interpessoais para fazer amigos e influenciar pessoas. Nós, americanos, priorizamos tanto a felicidade que registramos em nossos documentos fundadores nosso direito de buscá-la – e depois escrevemos mais de 30 mil livros sobre o assunto, conforme uma recente pesquisa na Amazon. Aprendemos, desde muito jovens, a desprezar nossas próprias lágrimas (“Chorão!”) e a censurar nossa tristeza pelo resto da vida. Em um estudo com mais de 70 mil pessoas, a psicóloga de Harvard Dra. Susan David descobriu que um terço das pessoas se julga por ter emoções “negativas” como tristeza e pesar. “Fazemos isso não só com nós mesmos”, diz David, “mas também com as pessoas que amamos, como nossos filhos.”

As atitudes sanguíneo-coléricas têm muitas vantagens, é claro. Elas nos ajudam a correr em direção ao gol, a lutar por uma causa justa. Mas toda essa torcida vigorosa e toda essa raiva socialmente aceitável disfarçam a realidade de que todas as pessoas (até mesmo, digamos, influenciadores digitais capazes de passos de dança impressionantes ou das “lacradas” mais virulentas) são seres frágeis e impermanentes. E assim nos falta empatia com aqueles que discordam de nós. E assim somos pegos de surpresa quando nossos próprios problemas aparecem.

Em contrapartida, o modo agridoce-melancólico pode parecer propenso ao recuo, improdutivo e afundado em nostalgia – definida como um estado de tristeza sem causa aparente, um desejo de algo inacessível. Ele anseia pelo que poderia ter sido ou pelo que ainda pode vir a ser.

Mas o anseio (longing, em inglês) é um ímpeto disfarçado: é ativo, não passivo, tocado pelo criativo, o terno e o divino. Sentimos falta de algo ou alguém. E nos esticamos para alcançar essa coisa ou pessoa, nos movemos em sua direção. A palavra longing deriva do inglês antigo langian, que significa “alongar”, e do alemão langen, esticar, estender. Seu sinônimo, yearning, está linguisticamente associada à fome e à sede, mas também ao desejo. Em hebraico, tem a mesma raiz da palavra paixão.

Em outras palavras, o que faz você sofrer é aquilo com que se importa profundamente – a ponto de tomar uma atitude. É por isso que na Odisseia, de Homero, a saudade de casa levou Odisseu a empreender sua jornada épica, que começa com ele chorando na praia por sua Ítaca natal. É por isso que a maioria das histórias infantis pelas quais você se apaixonou, de O Rei Leão à série Harry Potter, tem protagonistas órfãos. Somente quando os pais morrem, transformando-se em objetos de anseio, as crianças embarcam em suas aventuras e reivindicam seu direito de nascença. Essas histórias nos tocam porque estamos todos sujeitos a doenças e ao envelhecimento, a separações e mortes de familiares, pestes e guerras. E a mensagem de todas essas histórias, o segredo que poetas e filósofos vêm tentando nos contar há séculos, é que nossa nostalgia é a grande porta de entrada para o pertencimento.

Muitas das religiões do mundo ensinam a mesma lição. “Sua vida inteira deve ser de anseios”, escreve o autor anônimo de A nuvem do não saber, uma obra mística do século XIV. O Alcorão (92:20-21) diz que aqueles que constantemente nutrem intenso anseio por encontrar o verdadeiro rosto de seu senhor alcançarão a realização completa. “Deus é o suspiro da alma”, disse o místico e teólogo cristão do século XIII Mestre Eckhart. “Nosso coração é inquieto até repousar em ti” é a frase mais citada de Santo Agostinho.

É possível sentir essa verdade naqueles momentos em que a percepção do tempo desaparece, quando você testemunha algo tão sublime – um famoso refrão de guitarra, um salto mortal sobre-humano – que parece vir de um mundo mais perfeito e belo. É por isso que reverenciamos astros de rock e atletas olímpicos, porque eles nos trazem um alento mágico vindo desse outro lugar. Mas esses momentos são passageiros e queremos viver nesse outro mundo para sempre. Estamos convencidos de que é o nosso verdadeiro lugar.

Na pior das hipóteses, pessoas do tipo agridoce se desesperam porque o mundo perfeito e belo está para sempre fora de alcance. Mas, na melhor, elas tentam trazê-lo à existência. O agridoce é a fonte oculta de nossos planos mais ambiciosos, das obras-primas e histórias de amor. É por causa do anseio que tocamos sonatas ao luar e construímos foguetes para Marte. Foi por causa do anseio que Romeu amou Julieta, que Shakespeare escreveu a história deles, que ainda a representamos séculos depois.

Não importa se chegamos a essas verdades pelo Rei Leão, pela Simone Biles ou por Santo Agostinho – se somos crentes ou ateus. As verdades são as mesmas. Quer você anseie pela pessoa amada que terminou com você ou pela que sonha em conhecer; quer esteja ávido pela infância feliz que nunca terá ou pelo divino; quer aspire a uma vida criativa, ao país onde nasceu ou a uma união (pessoal ou política) mais perfeita; quer sonhe em escalar as montanhas mais altas do mundo ou se fundir com a beleza que contemplou em suas últimas férias na praia; quer deseje aliviar a dor de seus ancestrais ou criar um mundo em que a vida possa sobreviver sem o consumo de outras vidas; quer anseie por uma pessoa perdida, uma criança ainda não nascida, a fonte da juventude ou o amor incondicional: todas essas são manifestações de uma mesma e imensa dor.

Chamo esse lugar, esse estado pelo qual ansiamos, de “mundo perfeito e belo”. Na tradição judaico-cristã, é o Jardim do Éden e o Reino dos Céus; os sufis o chamam de o Bem-Amado da Alma.16 Mas existem inúmeros outros nomes: lar, por exemplo, “um lugar além do arco-íris” ou, como diz o romancista Mark Merlis, “a terra de onde fomos deportados antes de nascermos”.17 C. S. Lewis chamou-o de “o lugar de onde veio toda a beleza”.18 São todos a mesma coisa – o mais profundo desejo de todo coração humano, aquilo que Vedran Smailović evocou ao tocar seu violoncelo nas ruas de uma cidade devastada pela guerra.

Nas últimas décadas, “Hallelujah”, a balada de anseio espiritual de Leonard Cohen, se tornou presença obrigatória, um lugar-comum até, em programas de revelação de talentos na TV, como American Idol.19 Mas é por isso que lágrimas de alegria escorrem pelos rostos na plateia todas as vezes que os participantes a apresentam pela milésima vez. Não importa se nos consideramos “laicos” ou “religiosos”: de alguma maneira fundamental, todos estamos tentando alcançar os céus.

Mais ou menos na mesma época em que aqueles amigos foram me buscar no dormitório da faculdade e comecei a pensar sobre músicas tristes, me deparei com a ideia budista de que, como colocou o mitólogo Joseph Campbell, devemos nos esforçar “para participar alegremente das tristezas do mundo”.20 Eu não conseguia parar de pensar nessas palavras. O que significavam? Como algo assim seria possível?

Eu compreendia que essa orientação não devia ser levada ao pé da letra. Não se tratava de dançar sobre túmulos nem de reagir passivamente à tragédia e ao mal. Muito pelo contrário: tinha a ver com uma sensibilidade à dor e à transitoriedade, com abraçar este mundo de sofrimento (ou de insatisfação, dependendo de como você interpreta o sânscrito da Primeira Nobre Verdade do budismo).

Ainda assim, a dúvida persistia. Acho que eu poderia ter ido à Índia ou ao Nepal para tentar respondê-la, ou ter me matriculado num programa de estudos asiáticos em alguma universidade. Mas não. Simplesmente saí por aí e segui com a vida, com essa e outras dúvidas semelhantes sempre em mente: por que a tristeza, uma emoção que nos deixa abatidos como o Ió do Ursinho Pooh, sobreviveu às pressões evolutivas? O que realmente está por trás de nosso anseio pelo amor “perfeito” e incondicional (e o que isso tem a ver com nosso gosto por músicas tristes, dias chuvosos e até mesmo pelo sagrado)? Por que a criatividade parece estar associada ao anseio, à tristeza e à transcendência? Como devemos lidar com um amor perdido? Como um país fundado em tanta dor se transformou em uma cultura de sorrisos normativos? Como podemos viver e trabalhar de forma autêntica em uma cultura de positividade forçada? Como devemos viver sabendo que nós e todas as pessoas a quem amamos vamos morrer? Será que herdamos a dor de nossos pais e ancestrais e, se herdamos, será que podemos transformá-la numa força benéfica?

Décadas depois, este livro é a minha resposta.

É também um relato da minha jornada do agnosticismo rumo… a quê? Não exatamente à fé, não sou mais nem menos agnóstica do que quando comecei. Mas rumo à percepção de que você não precisa acreditar em concepções específicas de Deus para ser transformado pelo anseio espiritual. Há uma parábola hassídica na qual um rabino percebe que um homem idoso de sua congregação é indiferente à sua fala sobre o divino. Ele então cantarola para o homem uma melodia pungente, uma canção melancólica. “Agora entendo o que você deseja ensinar”, diz o velho. “Sinto um intenso anseio de me unir ao Senhor.”

Sou muito parecida com esse velho. Comecei a escrever este livro para desvendar por que tantos de nós reagimos de forma tão intensa à música triste. À primeira vista, esse parecia um tema insignificante para um projeto de tantos anos. No entanto, eu não conseguia abrir mão dele. Na época, eu não fazia ideia de que a música era apenas a porta de entrada para um reino mais profundo, no qual você percebe que o mundo é sagrado e misterioso, encantado até. Algumas pessoas entram nesse reino através da prece, da meditação ou de caminhadas na floresta; a música em tom menor foi o portal que por acaso me atraiu. Mas essas portas de entrada estão por toda parte e assumem infinitas formas. Um dos objetivos deste livro é instigar você a percebê-las. E atravessá-las.

 

TESTE AGRIDOCE

 

Algumas pessoas vivem instintivamente em um estado agridoce – e sempre foi assim. Outras o evitam ao máximo, enquanto outras ainda chegam a ele apenas depois de certa idade ou após encarar os desafios e triunfos da vida. Se você está se perguntando quanto se inclina a esse tipo de sensibilidade, pode responder ao teste a seguir, que desenvolvi com a colaboração do pesquisador e cientista Dr. David Yaden, professor da faculdade de medicina Johns Hopkins, e do cientista cognitivo Dr. Scott Barry Kaufman, diretor do Centro de Ciência para o Potencial Humano.*

Para descobrir quão agridoce você é a esta altura da vida, responda às seguintes perguntas e indique seu nível de concordância em uma escala de 0 (discordo totalmente) a 10 (concordo completamente).

 

              Você chora facilmente com comerciais de TV emocionantes?

              Você fica particularmente comovido com fotografias antigas?

              Você reage intensamente à música, à arte ou à natureza?

              Alguém já descreveu você como uma pessoa “madura demais para a idade que tem”?

              Você encontra conforto ou inspiração em um dia chuvoso?

              Você entende o que o autor C. S. Lewis quis dizer quando descreveu a alegria como uma “pontada cortante e maravilhosa de nostalgia”?

              Você prefere poesia a esportes (ou talvez veja poesia nos esportes)?

              Você se emociona a ponto de sentir arrepios várias vezes por dia?

              Você vê “as lágrimas das coisas”? (Essa frase é da Eneida, de Virgílio.)

              Você se sente enlevado com músicas tristes?

              Você tem a tendência a ver o que as coisas têm de alegre e triste ao mesmo tempo?

              Você busca a beleza na sua vida cotidiana?

              A palavra pungente ressoa em você de modo especial?

              Quando conversa com amigos próximos, você se sente propenso a falar sobre os problemas deles, passados ou atuais?

              E por fim: você se sente capaz de ficar extasiado nos momentos mais inesperados?

Esse último item pode parecer estranho para um inventário de coisas agridoces. Mas não estou falando de uma mentalidade otimista ou de um sorriso fácil. Refiro-me a uma estranha exaltação que o anseio pode trazer. De acordo com uma pesquisa recente de Yaden, a autotranscendência (a capacidade de ir além da própria individualidade, assim como suas primas mais moderadas, como a gratidão e os estados de fluxo) aumenta em momentos de transição, de término e de morte – nos momentos agridoces da vida.

Na verdade, você poderia dizer que o que orienta uma pessoa para o agridoce é uma consciência aguçada da finitude. Crianças alegres pulando em poças d’água trazem lágrimas ao rosto de seus avós porque eles sabem que um dia as crianças vão crescer e envelhecer (e eles não estarão lá para ver isso). Mas essas lágrimas não são exatamente de tristeza; no fundo, são lágrimas de amor.

Para chegar à sua pontuação no Teste agridoce, some suas respostas e divida o total por 15.

Se o número obtido for menor do que 3,8, você tem uma tendência sanguínea.

Se o número for superior a 3,8 e inferior a 5,7, você tem tendência a oscilar entre os estados sanguíneo e agridoce.

Se sua pontuação for maior do que 5,7, você é um verdadeiro conhecedor do lugar onde a luz e a escuridão se encontram.

As pessoas que leram meu livro O poder dos quietos – Como os tímidos e introvertidos podem mudar um mundo que não para de falar se interessarão em saber que os estudos exploratórios de Yaden e Kaufman mostram uma forte correlação entre pontuações elevadas no Teste agridoce e o traço identificado pela psicóloga e escritora Dra. Elaine Aron como “alta sensibilidade”.* Yaden e Kaufman também encontraram uma forte correlação com a tendência à “absorção” – que prevê criatividade – e uma correlação moderada com o arrebatamento, a autotranscendência e a espiritualidade. Por fim, encontraram uma pequena associação com a ansiedade e a depressão, o que não é surpreendente. Melancolia excessiva pode levar ao que Aristóteles chamou de doenças da bile negra (melaina kole, da qual a melancolia recebeu o nome).

Este não é um livro sobre essas enfermidades, embora sejam reais e devastadoras. Muito menos uma celebração delas. Se você acredita que está sofrendo de depressão, ansiedade severa ou mesmo estresse pós-traumático, por favor, saiba que pode e deve procurar ajuda!

Este livro é sobre a riqueza da tradição agridoce e sobre como explorá-la para transformar nosso modo de criar, de educar os filhos, de liderar, de amar e de morrer. Espero que ele também nos ajude a compreender uns aos outros e a nós mesmos.

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Susan Cain

Sobre o autor

Susan Cain

SUSAN CAIN estudou Artes na Universidade Princeton e se formou em Direito na Universidade Harvard. Apontada como uma das dez pessoas mais influentes do mundo pelo LinkedIn, é uma famosa palestrante e autora dos premiados livros O poder dos quietos, que já vendeu mais de 4 milhões de exemplares, e O poder dos quietos para jovens: como fortalecer as capacidades secretas da nova geração de introvertido. Suas palestras TED já tiveram mais de 40 milhões de visualizações.   Traduzido para mais de 40 idiomas, O poder dos quietos ficou oito anos na lista de mais vendidos do jornal The New York Times.

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