Introdução
Você não usa o humor em todo o seu potencial. Sim, é frustrante ouvir isso. É como aquela sensação estranha que temos quando descobrimos, depois de muitos anos utilizando alguma coisa – um eletrodoméstico, um software, um aplicativo –, que não a estávamos usando direito. Ficamos felizes porque de agora em diante a vida será mais fácil, mas também ficamos frustrados por termos perdido tanto tempo sem saber aquilo. Você vai se sentir exatamente assim ao longo deste livro. Mas é melhor descobrir agora. Assim superamos logo a decepção e abrimos caminho para aproveitar os benefícios daqui para a frente.
Todo mundo sabe que o ser humano traz embutida em si uma função chamada humor. É verdade que em alguns ela vem embutida tão fundo que parece não estar lá, mas, em geral, conseguimos entrevê-la e mesmo acioná-la conforme nossa necessidade. Quando isso dá certo, podemos medir o efeito nas pessoas à nossa volta pelos sinais: os sorrisos, as risadas, as gargalhadas ou um infarto agudo do miocárdio de tanto rir – embora esse seja, felizmente, um resultado mais raro.
Além de propiciarem esses momentos prazerosos, os quais buscamos repetir, o humor e o riso têm um potencial oculto enorme do qual a maioria de nós nem desconfia. Quem melhor conseguiu explorar esse poder até hoje parece ter sido a indústria do entretenimento, que a cada dia aprimora mais as ferramentas e os métodos para nos oferecer risos em troca do nosso dinheiro. É uma equação em que todos ganham, porque quanto mais graça achamos, menos de graça ficam os risos. O que deixa essa indústria rindo à toa. Afora o interesse financeiro, no entanto, pouco interesse científico foi despertado pelo humor ao longo da história da humanidade. Daí nós ignorarmos quão útil ele pode ser.
Meu interesse pelo tema vem de longa data. Antes mesmo de eu desenvolver uma curiosidade profissional, o humor tinha forte presença em minha vida. Desde pequeno percebi que gostava de fazer as pessoas rirem. Primeiro porque eu recebia atenção, um dos bens mais recompensadores para qualquer pessoa (sobretudo para um aparecido como eu). Mas não era só isso. Sentia que os amigos ficavam mais próximos quando ríamos juntos de algo que eu dizia. Professoras e professores, desde o ensino infantil, encorajavam (sem saber) esse comportamento quando trocavam comigo olhares de cumplicidade – inevitáveis quando se compartilha a compreensão de uma piada –, mesmo que fosse para dar bronca pela gracinha. E era um recurso sempre à mão para tentar fugir das repreensões ou amenizar os castigos que receberia de meus pais quando eu aprontava alguma. Funcionava com frequência – para revolta de minha irmã mais velha, diga-se de passagem.
Para completar, meu avô paterno, o vô Otávio, sempre foi uma das minhas maiores influências. Criativo, inovador, inteligente, ele também adorava contar piadas. Minha avó Adélia é que não gostava muito daquilo, que lhe parecia certa impertinência, mas não havia almoço de família que não fosse regado a gracejos ou piadas recém-aprendidas por ele. Talvez tenha sido nesse convívio que, sem saber, comecei a vislumbrar a íntima associação que havia entre inteligência e comicidade.
De alguma maneira, o tema foi me acompanhando ao longo da vida, mas, afora informações reunidas aqui e ali – como um recorte de jornal com curiosidades sobre a risada encontrado em minha agenda do ensino fundamental ou um livro de divulgação científica dedicado ao riso que comprei numa viagem –, eu nunca havia me proposto a estudá-lo. Até que, nos anos 2010, uma nova teoria sobre o humor ganhou importância no (diminuto) meio acadêmico dedicado a esse tema, o que aguçou meu interesse científico. Passei a ler sobre essa teoria, suas relações com as visões anteriores, a importância dos aspectos psicológicos e mesmo neurológicos do humor, além dos fatores culturais e sociológicos. Há pouco mais de uma década, portanto, venho acumulando livros e leituras (mais livros do que leituras, como é de praxe), eventualmente dividindo algumas reflexões com leitores de minha coluna no Estadão, acalentando o sonho de um dia parar para organizar todo esse conhecimento.
Paradoxalmente, quando eclodiu a pandemia de covid-19 o assunto voltou com força para mim. Digo paradoxalmente porque nada parecia mais distante de nós do que a possibilidade de falar sobre humor diante de tanto sofrimento. Em um momento como aquele, seria possível rir, ou só nos caberia chorar?
Eu não era o primeiro a me fazer essa pergunta. Longe disso – é uma questão que deve estar presente desde que o primeiro homem das cavernas escorregou numa casca de banana, deixando seu bando na dúvida se ria ou não. No século XVII, a rainha Cristina da Suécia convidou o padre genovês Girolamo Cattaneo e nosso querido padre português Antônio Vieira para um debate sobre o tema. Vieira defenderia que Heráclito, o “filósofo chorão”, estava certo: que, diante desse mundo, só poderíamos Já Cattaneo deveria sustentar que Demócrito, “o filósofo que ria”, é quem tinha razão, que temos mesmo que rir nessa vida de dores.
“Quem conhece verdadeiramente o mundo há de chorar; e quem ri ou não chora, não o conhece”,1 afirma o padre português, para quem “o riso de Demócrito era ironia do pranto; ria, mas ironicamente, porque seu riso era nascido de tristeza, e também a significava”.2 Seria, portanto, possível rir nesse mundo sofrido – mas esse riso jamais significaria diversão. Veremos essa ideia se repetir em diferentes contextos ao longo deste livro.
Girolamo Cattaneo discorda. Para ele, é, sim, possível se alegrar mesmo vivendo num mundo com sofrimento: “É benemérita a ação do riso de Demócrito. Ele faz os homens não lamuriosos sob os mesmos tormentos e opressões da vida”, defende. Nesse sentido, o riso seria mais valioso do que as lágrimas, pois “se não trouxe proveito nos trouxe satisfação e se não convenceu seus seguidores ao menos os manteve contentes”. Mais ou menos como Woody Allen conclui em sua autobiografia: “E talvez eu não possa transmutar meu sofrimento numa grande arte ou filosofia, mas posso escrever boas piadas, o que me distrai momentaneamente e dá um breve alívio contra as consequências irresponsáveis do Big Bang.”
É possível, então, “rir de um mundo cruel”, como reflete um dos psicólogos mais relevantes nos estudos sobre ética de nosso país, o professor Yves de La Taille. Quando alguém é capaz de rir do estado das coisas, identificando as contradições da realidade e os problemas do mundo, não está “sendo cruel para com o mundo e as pessoas, mas sim observa que o mundo é cruel e faz com que dele possamos rir”. Seria uma maneira, como dizia o defensor de Demócrito, de não nos tornarmos lamuriosos, mesmo em condições adversas, já que “no humor existencial – que não nos faz rir do ridículo, mas sim do triste, do cruel –, o sentimento de superioridade não decorre de uma comparação, mas de uma espécie de compensação: a adversidade permanece, mas, ao fazer humor, a pessoa de certa forma vinga-se, simbólica e inteligentemente, do que ela teve ou tem de aturar” (grifos originais do autor).
Rir – ainda que em meio à tragédia – pode ser também uma forma de tentar se recuperar para seguir em frente. Poucas histórias ilustram melhor essa ideia do que a carta escrita pelo enfermeiro-chefe do serviço de anestesiologia de um hospital em Illinois, nos Estados Unidos, dirigida ao filho de um paciente que faleceu durante a cirurgia. Ela foi publicada no American Journal of Nursing em 1985 e dizia o seguinte:
Você me viu rindo após a morte de seu pai. Eu estava jogando água no rosto em uma pia a meio caminho entre o lobby do pronto-socorro e a sala verde, distante de onde o corpo dele repousava. Alguém contou uma piada boba e eu ri como um idiota, decoro esquecido, até encontrar seu olhar por sobre o ombro da roupa cinza do médico – seus olhos jorravam lágrimas. Devo ter parecido para você (…) a personificação de tudo o que é frio e impessoal nos hospitais. (…)
Meu riso foi inapropriado, e por isso peço desculpas.
Mas foi necessário. (…)
Gosto de pensar que seu pai teria entendido que aquele riso não significa desrespeito. (…) Naquele dia em que você me viu rindo, eu sabia que havia à minha espera outro paciente que precisava de meus cuidados e atenção total na cirurgia. Inclinado na pia e lavando o suor e o vômito do meu rosto e dos meus braços, meu riso era de purificação para mim tal como suas lágrimas eram para você.
Soubesse ou não, o enfermeiro tinha vivido na prática o provérbio iídiche que diz: “O que o sabão é para o corpo, o riso é para a alma.”
O mesmo efeito se deu em períodos de muitas maneiras análogos à pandemia de covid-19. Na epidemia de SARS em 2003, por exemplo, levantamentos entre os profissionais de saúde da linha de frente mostraram alto índice de adoecimento emocional, mas o humor foi identificado como um fator protetor. Como é dito na peça The Doctor’s Dilemma [O dilema do médico], de George Bernard Shaw: “A vida não deixa de ser engraçada quando alguém morre, da mesma forma que não deixa de ser séria quando alguém ri.”
Até nos campos de concentração existia humor – e não pouco, como vim a descobrir –, usado como estratégia de sobrevivência: “A vontade de humor – a tentativa de enxergar as coisas numa perspectiva engraçada – constitui um truque útil para a vontade de viver”, afirma Viktor Frankl, sobrevivente do Holocausto que posteriormente se tornou um influente psicólogo.
Devo confessar que esse aprofundamento reflexivo acerca da questão veio apenas durante a pesquisa para o livro. O que me levou na direção deste projeto foram algumas coincidências (das quais também só me dei conta posteriormente).
A primeira e talvez a maior delas foi que essa tragédia da covid-19 foi reconhecida como pandemia na mesma época em que eu lançava meu livro O lado bom do lado ruim (Sextante, 2020), dedicado ao estudo – e, por que não, à redenção – das emoções negativas. Após muito ler sobre como me livrar da tristeza, vencer a raiva ou superar a ansiedade – sem o menor sinal de que teria sucesso –, fui tomado pela certeza de que as emoções negativas exercem um papel na nossa vida, ou não teriam permanecido instaladas em nossa mente ao longo de nossa história evolutiva. E, ao me voltar para suas origens e funções, descobri formas de lidar com elas e até de usá-las a nosso favor.
O livro foi um grande sucesso, pois estávamos todos em busca de ajuda para atravessar aqueles tempos duros de tristeza, raiva e ansiedade. Insisti muito, muito mesmo, no bordão “Vai passar!”. Em artigos, em palestras corporativas, no meu canal no YouTube, em entrevistas, não cansei de repetir: “Vai passar!” Porque eu sabia que realmente passaria e acreditava que era importante renovar as esperanças das pessoas. Mas e depois?, comecei a me perguntar. Como ajudar as pessoas a se reerguer, retomar a vida, seguir em frente?
Foi quando uma segunda coincidência aconteceu. Ainda em março de 2020, na primeira das centenas de lives que eu acabaria fazendo ao longo daqueles meses, surgiu um comentário bem-humorado enquanto discutíamos o que nos esperava pela frente. Eu ri, mas no mesmo instante me perguntei se seria adequado. Então entendi que sim, que podíamos rir. Aliás, deveríamos. Não rir da desgraça alheia, obviamente. Não tripudiar do sofrimento ou da dor. Mas encontrar motivos para rir, mesmo em meio a desgraças, faz parte do que nos define como seres humanos, refleti. Se abríssemos mão dessa característica, se nos proibíssemos de rir, então o vírus teria ganhado a batalha. Seria como abrir mão da empatia, do altruísmo. Rir era necessário. No mês seguinte, publiquei um artigo chamado “Já pode rir?”, compartilhando parte desse pensamento.
Ao longo da pandemia, voltei algumas vezes ao assunto e uma terceira coincidência colocou-o ainda mais no meu radar. Foi quando usei a comédia para melhorar meu próprio estado emocional.
Era por volta de julho de 2020, quando estávamos para completar meio ano de pandemia. Naquela fase, já sabíamos que não seria um problema passageiro, como acreditamos no início, mas ainda não tínhamos ideia do que nos aguardava. Àquela altura, eu já deveria ter reorganizado minha vida em função das restrições, mas ainda não tinha conseguido entrar numa rotina nova – o que se tornou um grande desgaste. Percebi que estava irritado, cansado, impaciente; tudo me incomodava. Cheguei a pensar que estivesse em depressão – e talvez estivesse mesmo caminhando para isso.
Assim que percebi o que estava acontecendo tomei algumas atitudes: organizei minha rotina com mais afinco; me desconectei por uns dias para descansar; e maratonei a série Parks and Recreation. Para quem não conhece, trata-se de uma comédia protagonizada pela comediante Amy Poehler (a voz da personagem Alegria, na animação Divertidamente) e que gira em torno do Departamento de Parques e Recreação de uma pequena cidade americana. Eu adoro a série, mas fazia tempo que tinha parado de ver. Naquele período, me disciplinei para assistir todos os dias, até a última temporada, estivesse ou não no clima. E não é que funcionou? Como escrevi num artigo ao Estadão de 23 de julho de 2020, em que relatei essa experiência, “mesmo se não estivesse com tanta vontade no início, conforme as risadas iam se sucedendo a empolgação crescia. (…) O consumo de um conteúdo despretensioso e bem-humorado me ajudou tanto a gastar menos energia como a experimentar emoções mais agradáveis”. Numa entrevista recente, Amy Poehler reconheceu esse poder na série: “Eu acho – para ficarmos um pouco existencialistas – que quando os tempos são assustadores e inseguros, gostamos de voltar a coisas que já vimos antes. Especialmente a comédia é uma forma de se medicar. Muitas pessoas voltaram a séries que sabiam que as deixariam felizes, a que poderiam assistir com a família e cujo desfecho já conheciam. E penso que Parks and Recreation teve a sorte de ser uma delas.”
Se isso ainda não fosse o bastante para me convencer, no final do ano o comediante Paulo Gustavo – que viria a nos deixar precocemente, vitimado justamente pela covid-19 – afirmou em uma de suas últimas aparições na TV que o humor era fundamental naquele período. Ele disse: “Esse ano serviu para mostrar que a gente não vive sem a graça, sem o humor. O humor, ele salva, transforma, alivia, cura, traz esperança para a vida da gente.” E completou com uma frase que se tornaria emblemática: “Rir é um ato de resistência.”
Como costuma acontecer, foi só posteriormente que a sinergia entre esses eventos ficou evidente para mim. Só fui ter plena consciência de que tudo me levava na direção deste livro mais ou menos em… bem, mais ou menos agora, quando sentei para escrever esta Introdução. No início de 2021, eu estava discutindo temas para um próximo livro com a Nana Vaz de Castro, diretora de aquisições da Editora Sextante, e de alguma forma nos pareceu claro que para mim esse era um bom momento de mergulhar no humor, ideia que acalentávamos havia algum tempo. No pós-pandemia, as pessoas precisariam de recursos para se reerguer emocionalmente, se reinventar, se curar, e o humor era a ferramenta ideal. Mas já que, como eu disse no início, não sabemos usá-lo em todo o seu potencial, um livro poderia ajudar muito nessa hora.
Peguei a bibliografia que reuni ao longo dos últimos anos, imprimi os artigos que havia guardado para ler um dia e, com minha editora mordendo meu calcanhar para que eu cumprisse os prazos, me pus a ler, anotar, escrever, ordenar, reordenar, reescrever, até chegar à estrutura que achei mais interessante e didática. Fiel às minhas origens científicas, não bastaria simplesmente oferecer dicas para aplicar na vida e sair rindo por aí. Assim como fiz em O lado bom do lado ruim, fui atrás das bases teóricas do riso e do humor para dali extrair sua utilidade. Comecei me fazendo as perguntas essenciais: o que é o riso? O que é o humor? Como, por que, quando, onde, com quem rimos? E, quando vi, o sumário estava pronto. A partir daí, era colocar a mão na massa.
A literatura disponível é interessante, mas pouco vasta, já que, como vimos, o tema nunca despertou muito o interesse dos acadêmicos. Também foram poucos os filósofos célebres que se debruçaram sobre o assunto. Podemos citar Aristóteles, na Antiguidade Clássica; Thomas Hobbes, na Idade Moderna; Henri Bergson, no século XX. Eles constituem alicerces fundamentais para organizar esse edifício, e você os encontrará ao longo da leitura.
Mas não teria sentido olhar apenas para a filosofia se quisesse fazer um panorama mais abrangente – e, principalmente, aplicável na prática. O riso e o humor, afinal, dependem muito do contexto histórico e social – o que é engraçado hoje perde a graça amanhã e o que diverte um japonês pode entediar um americano. Seria importante, então, dedicar parte do livro a essa investigação – que também aparece nestas páginas.
Tampouco podemos esquecer, é claro, que só existem filosofia, sociologia e história do riso porque existe o riso em si, que acontece porque tanto nosso cérebro, do ponto de vista estritamente neurológico, como nossa mente, pensada em seus aspectos funcionais, atuam para a produção e a compreensão do humor e da risada – neurociência e psicologia não poderiam, portanto, faltar.
Assim, dividi o livro em três grandes seções: corpo, mente e sociedade. E, a partir daí, procurei distribuir as perguntas “o quê”, “como”, “por quê”, “onde”, “quando” e “com quem” (nessa ordem) entre as diferentes áreas do conhecimento.
A Parte 1: Corpo é dedicada à máquina humana, o hardware cerebral, por assim dizer. Começar pelas definições é sempre um bom começo. O riso é um fenômeno físico, com origem neurológica e manifestação corporal, então estava na seção correta: “o quê”. Era preciso também explicar o que eu estava chamando de humor, estabelecendo logo de partida qual é a definição usada, entre as muitas possíveis. Aqui, precisei ir um pouco além do corpo para fazer uma tipologia do humor, mas, num tema tão multifacetado, as fronteiras entre os capítulos não têm mesmo como ser rígidas.
Definido “o quê”, era hora de compreender “como”. Não se trata de tarefa fácil, pois é preciso primeiro entender as características necessárias para que algo pareça engraçado – ou seja, como achamos graça – para depois descobrir como essa graça é percebida pelo cérebro e transformada nos sons e movimentos estereotipados que chamamos de riso. Embora ainda estejamos na seção corpo, um pouco de filosofia é necessário para entendermos o que faz com que, antes de tudo, algo seja engraçado. Compreendidas as principais teorias, recorremos às pesquisas de neuroimagem para explicar os caminhos do riso, desde a entrada desses estímulos – visuais, verbais, etc. – até a saída, na forma de risadas.
Esclarecidas as bases do fenômeno, é hora de nos perguntarmos: mas por que rimos, afinal? Existe um motivo, um propósito? É o que encontramos na Parte 2: Mente, que trata dos aspectos psicológicos. E, sim, descobrimos os prováveis motivos para rirmos quando nos voltamos para a psicologia evolutiva: tudo indica que esse comportamento, quase exclusivo dos seres humanos, tenha nos trazido alguma vantagem ao longo da evolução, já que as pessoas desprovidas de senso de humor aparentemente foram extintas pelo caminho. (Eu sei que você pensou que só escrevo isso porque não conheço seu chefe. Mas, acredite, ele também tem senso de humor – só não sabe usá-lo. Este livro poderia ser um bom presente de amigo secreto, quem sabe?)
O interessante é que essa investigação psicológica do humor ajuda também a desvendar o “quando”. Do riso reflexo do bebê, passando pela risada social, sobrevivendo ao humor escatológico das crianças e chegando ao humor ácido das piadas de velório, o tempo é um fator importante no riso, tanto do ponto de vista cronológico quanto no que diz respeito ao timing das piadas, como todo comediante sabe muito bem.
A Parte 3: Sociedade caminha do “quando” para o “onde”. Sabemos que em cinemas, teatros e casas de show as risadas são constantes. Mas é em lugares improváveis, como hospitais e cenários de tragédias, que sua ocorrência é tanto mais surpreendente quanto mais importante. Na educação, assunto muito sério, rir pode tornar as aulas memoráveis. E elas são ferramentas bastante úteis também no trabalho – embora seja importante tomar certo cuidado, já que rir do chefe no happy hour não tem as mesmas consequências de fazê-lo numa reunião de acionistas.
Depois de toda essa jornada, pensar “com quem” e “de quem” rimos nos ajudará a fazer um grande resumo de vários aspectos do humor. Quando nos damos conta de como o riso é diferente se estamos sozinhos ou em grupo, como ele é influenciado pelas relações hierárquicas, por questões de gênero, quando compreendemos sua relevância nos vínculos pessoais, tudo isso nos leva a retomar a neurociência e a psicologia como um caminho natural de sintetizar a sociologia do riso.
E, à medida que essas perguntas – o quê, como, por quê, quando, onde e quem – forem respondidas, o leitor se dará conta das funções ocultas do humor, dos benefícios de uma boa gargalhada e de que não temos aproveitado bem esse aplicativo que já vem instalado de fábrica em nosso cérebro. A risada tem reflexos no corpo; por exemplo, leva ao relaxamento muscular e à liberação de neurotransmissores associados ao bem-estar. Ela também é capaz de reduzir a tensão no ambiente, trazendo leveza às interações sociais, o que pode ser bastante benéfico, desde melhorar o clima no trabalho até facilitar conversas difíceis. Quem já usou uma piada como forma de iniciar um flerte conhece um dos poderes do riso, mas talvez não tenha percebido que ele também pode ser útil para terminar um relacionamento de forma menos traumática – afinal, como veremos, até a dor física pode ser reduzida com uma boa risada.
Instrumento de crítica e transformação. Lente de aumento para autoanálise. Técnica de persuasão. O humor pode ser tudo isso. E, com sua capacidade única de nos levar a considerar outros pontos de vista, guarda muitas semelhanças com a psicoterapia. Veremos que não é só por estimular emoções positivas que ele ajuda no manejo do estresse, mas também por nos permitir reavaliar as situações, aliviando sua carga emocional.
Mas não quero estragar a graça de ninguém. O objetivo deste livro não é transformar um brinquedo numa ferramenta. Foi Rubem Alves quem me ensinou a diferença: a ferramenta é algo útil, que usamos para alguma coisa, tem uma função clara, enquanto o brinquedo é inútil, não tem uma finalidade a não ser a própria diversão. Segundo ele, brinquedo é tudo aquilo que “não existe para levar a coisa alguma. Quem está brincando já chegou”. A matemática seria uma ferramenta; a poesia, um brinquedo. A vida se justificaria pelo que é inútil – o amor, a arte, o prazer. Pensando assim, o humor certamente ficaria na caixa de brinquedos, pois é inutilmente prazeroso. Eu concordo discordando: existem, sim, as coisas definidas por suas funções (as ferramentas) e as coisas definidas pelo prazer (os brinquedos). Entretanto, isso não significa que não possamos brincar com as ferramentas. Quantas charadas matemáticas não são puramente divertidas, por exemplo? Tampouco nos impede de encontrar utilidade nos brinquedos: jogos educativos educam, mas não deixam de ser divertidos. Falar em utilidade da brincadeira não precisa, portanto, ser uma contradição.
O sociólogo e teólogo Peter L. Berger traça um paralelo interessante entre o cômico e o lúdico, mostrando que ambos são pausas que damos nas “atividades sérias e mundanas da vida cotidiana”, diz ele, concluindo que, “possivelmente, a experiência do cômico está baseada na disposição humana para jogar”. Brincadeira, sim. Divertido, com certeza. Mas útil, por que não? Num estudo sobre emoções positivas, pouco mais de um terço dos participantes disse usar o humor de forma consciente para se livrar de um estado negativo, como ansiedade, nervosismo ou tristeza, ou para se manter positivo. Veja que muita gente já descobriu como brinquedos podem ser úteis.
Então é isso: o humor será sempre um brinquedo e deve se manter prazeroso, mas é também uma ferramenta útil. Este livro não pretende mudá-lo de caixa. Está mais para um manual de instruções. Eu sei, a gente raramente lê esses manuais – e exatamente por isso deixamos de aproveitar tudo o que poderíamos, sejam ferramentas ou brinquedos.
Espero que você aprenda mais sobre o humor, que se divirta lendo este manual e que ria das eventuais piadas que encontrar por aqui. Mas espero acima de tudo que, após descobrir a ciência e os benefícios do riso, você perceba que rir é preciso!